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22.7.18

POST CARD - TERESINA, Paulo Machado







POST CARD 57


na praça marechal deodoro
às nove horas falavam
da u d n e do american-can

um louco jaime fazia ponto no cruzamento
da barroso com a senador pacheco sem saber
que há tempos existia a guerra fria

quinta-feira era dia de matar o tempo
na praça pedro segundo enquanto sapos
copulavam nos lajedos do tanque

nas tertúlias do clube dos diários
uma geração embarcava no marasmo
esquecendo tudo mais

nos canteiros da avenida frei serafim
os cupins construíam suas casas
fiando estranha quietude

no bar carnaúba o sol roía o marrom
das tabículas das mesinhas ao passo que
os homens de casimira cinza faziam planos

na paissandu os bêbados
pregavam a subversão
e um bolero esquentava as entranhas da noite

nas calçadas da simplício mendes
um rosto magro madalena deixava brotar
estranhamente um sorriso largo de espera

no mercado central pretas carnudas
vendiam frito de tripa de porco
fígado picado e caninha

no caís do parnaíba piabas
cor de prata saltavam das águas salobras
como no sonho dos meninos



POST CARD 77


na marechal deodoro
às nove horas há velhos com suas memórias
recompondo o tempo

quinta-feira é um qualquer
e na praça pedro segundo a mudança notável
é a da posição da estátua que parece sorrir

no cruzamento da barroso com a senador pacheco
há um sinal que não raro
encrenca desafiando a rotina

não há tertúlias no clube dos diários
as baratas medrosas saem das boca-de-lobo
admiram os caixotes de cerveja empilhados e fogem

nos canteiros da avenida frei serafim
putas acenam com gestos medidos
a fome é mais forte que o medo

não há bar carnaúba mas os homens
de casimira cinza continuam fazendo planos
cogitando não aceitando irreverências

a paissandu agoniza
os bêbados já não falam tanto
e a frieza da noite venceu o calor dos boleros

madalena morreu de câncer
e nas calçadas da simplício mendes
não há nada que lembre a sua presença

no mercado central negrinhos descarnados
catam laranjas e limões podres
em plena manhã de maio

o parnaíba continua lavando as almas pagãs
dos meninos fujões
roendo as pedras do cais com a mesma raiva



Paulo Machado
em Post Card

29.12.15

Menino no cais, Graça Vilhena


é uma criança sozinha
no cais vazio de barcas
vejo daqui o seu corpo
que a noite adormeceu
sem pensamentos e abraço

é um menino pequeno
sob o luar ao relento
feito uma flor no sereno


Graça Vilhena
em PEDRA DE CANTARIA
Teresina, Nova Aliança e Entretextos, 2013

2.12.15

SÃO PIAUÍ (1977) - Clodo, Climério e Clésio



Lado A

01 - 00:00 - A noite amanhã o dia (Climério)
02 - 03:31 - Cebola cortada (Petrúcio Maia/Clodo)
03 - 06:48 - Cantiga (Clodo/Clésio)
04 - 09:35 - Conflito (Petrúcio Maia/Climério)
05 - 11:22 - Folia ou pressa (Clésio/Augusto Pontes)
06 - 14:02 - Ilha azul (Clodo)

Lado B

07 - 16:26 - Zero grau (Clésio/Climério)
08 - 20:12 - Palha de arroz (Climério)
09 - 24:06 - Cada gesto (Clodo)
10 - 27:26 - Céu da boca (Clodo/Climério)
11 - 29:45 - Nudez (Clésio/Clodo)
12 - 33:25 - São Piauí (Bê/Climério)

(...)

ILHA AZUL | Clodo

quando eu saí
lá do Piauí
caboclo novo que nem vaquejava ainda
eu curti muito o Rio Parnaíba
levando toco de madeira e balsas
até que um dia eu vim parar aqui
nos olhos verdes da mineira clara
nesta cidade
esta maquete viva
feita de sonhos de um herói sem nome

um dia
quem sabe noite
de um mês qualquer
a gente grita laços fora e vai
falar da nossa vila
nossa ilha azul

(...)

PALHA DE ARROZ | Climério Ferreira

o rio beirando a rua
num arremedo de cais
o vapor de Parnarama
chegando de Palmeirais
o velho homem do porto
de olhos postos no rio
sentindo todo vazio
de sua pobreza em paz
Maria boca da noite
na Pensão Familiar
tem nos olhos de manhã
a luz clara do luar
cadê teu povo noturno
teu povo maior maria
teus operários da noite
nas oficinas do dia
ali onde habitou
a rua cheia de tédio
hoje mora outra dor
feita de casa e de prédio
já nem sei se essa rua
realmente existiu
ou se foi obra
de algum bêbado
num acesso de poesia
vendo no rio
outro sonho
mais refletido que a lua
inventou um cais tristonho
e os habitantes da rua
vendo no rio
outro sonho
mais refletido que a lua
e inventou um cais tristonho
e os habitantes da rua

(...)

SÃO PIAUÍ | Bê e Climério Ferreira

vem comigo menina
vem comigo aqui pra São Paulo
pra são pulo! – vem pra São Piauí
aqui tem um ar de Europa
um cheiro novo de África
tem operário a galope
sob o aboio da fábrica
tem boi de ferro e fumaça
na massa deitando a morte
de sorte que o centro-sul
desse estado dá no norte
no asfalto tem uma pedra
tem uma pedra no asfalto
que de repente num salto
se desfaz na boca
o beijo que se desprega
da nossa garganta louca rouca
poluída de calor
vem pra São Piauí
que a vida começa aqui
no viaduto do chão
por que não?
ou no riacho do chá.


(...)

Clodo, Climério e Clésio
LP São Piauí – RCA Victor – no. 103.0208 – 1977
Gravado no estúdio A da RCA Victor em São Paulo
Direção Artística – Osmar Zan
Coordenação artística e direção de estúdio – Ednardo
Arranjos e regência – Mário Henrique
Participações de Amelinha (vocal em “Cada gesto”) e Robertinho de Recife (guitarra e viola)

24.11.15

O CAIS DO RIO




o cais do rio
                      é
                      dos timoneiros
                      das lavadeiras
                      dos bêbados
                      dos poetas
                      e
das putas da paissandu
(o cais do rio
se deixa possuir por todos
em suas entranhas)

no cais do rio
as putas da paissandu
(como o esperma dos homens
que as possuem a qualquer hora)
constroem seus cemitérios particulares.



Kenard Kruel
O Rio: Antologia Poética
Teresina: Edições Corisco, 1980

20.7.15

BALADA DE TERESINA – A CIDADE VERDE, de Barros Pinho



recordo
a adolescência
nas árvores
de minha cidade

no circo
das areias
que ainda
circula
em meu juízo

no cais
onde aprendi
a história
da pureza

no riscos
das gatas
espreitando
em cada esquina
da rua paissandu

na rua
pedro II
onde rodei
com a primeira
namorada

no vaga-lume
ferindo
o otimismo
no escuro
do cine-rex

nos bons
comícios da udn
naquele tempo
mulher de muito
respeito

nos bichos
oficiais
pássaros
camelôs
do mercado velho

nas íntimas
novenas
de são raimundo
na piçarra

na vulgaridade
eletrônica
da mensagem
de um alguém
para um certo alguém
que está ausente

nos meus gritos
ecoando
a céu aberto

olha a laranja
olha a bananeira

olha a saudade



Barros Pinho
em Planisfério, 2ª edição
Teresina: Corisco, 2001


BALADA DO RIO PARNAÍBA, de Barros Pinho



não conhecia
o mar
o rio de minha
cidade era meu oceano

no cais
na rampa
laranjas
prostitutas
a granel

o vento
entra
pelas narinas
com peixe
creolina
e cashmere bouquet

lá em cima
a máquina
pilando arroz

a banca
de gelado
tábuas
de pirulito

em baixo
barcas
barcaças
navegando

lavadeiras
abertas
ao sol

lanchas
vapores
fumegando

fiscal
de renda
paletó
e gravata
cuidando
das coisas
do estado

canoas
canoeiros
só passando

noites
vivendo
de aventuras

suicídio
na senda
do ciúme

do outro lado
timon
antiga flores

águas
tranquilas
correm
sob a ponte



Barros Pinho
em Planisfério, 2ª edição
Teresina: Corisco, 2001


2.1.13

PAISAGEM AMARELA





maria
todo dia
ia
de encontro ao cais.

trouxa na cabeça
ia maria lavrar planos
que há anos
o rio enxaguou.

levava um sorriso pálido
pra dar sentido
à roupa amarelada.



Wilton Santos
em CERCA DE ARAME
Teresina: 1979

19.9.12

BEIRA RIO BEIRA VIDA, Marcos Freitas


beira de rio
açucenas
Casa Marc Jacob
Armazém Paraíba
lavadeiras
fogão e geladeira
troca-troca cais

beira de rio
pescador na CEPISA
manguezal no São Pedro
balsas em travessia
lavadores em agonia

beira rio
quase morto
assoreado
noite e dia


Marcos Freitas
em Urdidura de sonhos e assombros
Poemas escolhidos (2003 – 2007)
Rio de Janeiro: CBJE, 2010

23.12.11

EX-TERESINA




Teresina,
A minha,
Essa não há mais.

A minha
Era uma cidade sem cais
Pois essa atual veio depois
Do desaparecimento da Palha de Arroz

A Teresina
Dos Cajueiros
Do Barrocão
Da Maria Tijubina
Essa não mais se mostra à retina

A da Estrada Nova
Da Baixa do Chicão
A da Usina
Não há mais tal Teresina

A da vitamina do Mundico
Do pastel do Gaúcho
E a do Bar Carnaúba
Do programa do Al Lebre
Da crônica do Carlos Said
Das aulas de A. Tito Filho
Das agências da Saraiva
Do teatro de Santana e Silva
Das raparigas do corso

De tudo que já foi
Resta a cajuína
E uma nova Teresina
Que nunca termina
E constantemente nos ensina
A ter o seu amor como sina



Climério Ferreira
em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

14.12.11

Rua da Glória, Graça Vilhena

para o poeta Paulo Machado

paisagem de sol nascido
na estação do trem
cerzindo os dias
sobre as pedras da rua
que abrolhavam luz

manhãs tangiam beatas
palmolivelmente
para a missa do Amparo

senhoras varriam calçadas
recolhiam leiteiras
e caçavam histórias
com as suas línguas de camaleão

no mercado central
as verdureiras arranjavam
buquês de cheiros-verdes

e mais além
mulheres permaneciam
sem hora de seus dias
dissolvendo-se em transparência
nas escamas do cais


em PEDRA DE CANTARIA
Teresina, Nova Aliança e Entretextos, 2013

11.11.11

TER-TE TERESINA


para manuel avião, nicinha e bibelô


ter-te
ter a sina da dívida
que tenho contigo
de não te devolver o amor que tens em mim

na marca dos quintais,
do cais do rio, do mercado,
o bolo-frito com café preto,
o troca-troca das bicicletas, dos passarinhos
trocar olhares na Praça Pedro II
até às nove horas,
depois descer a velha rua Paissandu
de romances venéreos,
aventuras nos seriados do cinema
e nas tertúlias do Clube dos Diários...

ter-te
ter a sina dividida
que tenho o castigo
do filho ingrato que mais usufruiu o teu caminho
na marca dos quintais
do beira-rio, do pecado,
Maria Izabel e o segredo
no troca-e-rouba um beijo, a flor dos descaminhos
roubar pitombas nos quintais
após às nove horas,
depois descer à Palha de Arroz
em encontros etéreos,
princesa dos rios de alfazema
não-se-pode um cavaleiro solitário...
ter-te
ter a sina dividida na dívida
personagens de tuas ruas,
muito mais te deram na tua tua construção
(sem nada em troca)
do que eu, que muito te tenho em mim...



em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

1.11.11

TERESINA NO PASSADO, Guaipuan Vieira


No final de maio de 1996, retornei a Teresina, integrando a Comissão de Intercâmbio Cultural de Fortaleza, a convite da Academia de Letras Vale do Longá. Ficamos hospedados no Hotel São José, à margem direita do rio Parnaíba, no coração da Verde Capital. Além da Ala Feminina da “Casa de Juvenal Galeno”, estavam o diretor desta, o escritor Alberto Santiago Galeno e o poeta Paulo de Tarso. Alberto me pedira para levá-lo ao Mercado Central, pois desejava comprar um chapéu de vaqueiro feito no Piauí. Eram quinze horas de sábado. O silêncio pairava no centro, devido o final de semana. Mesmo sabendo que àquelas horas seria impossível encontrar o mercado aberto, tive que atender o pedido.

Alberto, que caminhava a passos lentos e, cambaleando, estava calado, mas observador. Paulo, que nos acompanhava, admirava os velhos casarões e o rio que solitário descia entrecortado pelas coroas, indagou a Alberto:

- Doutor, o senhor conhecia Teresina?

Ele, sem pensar, duas vezes respondeu:

 - De passagem. Guaipuan não nos conta a sua história.

A responsabilidade pesou-me nos ombros. Calado, como menino repreendido, não sabia por onde começar. As recordações refletiam à mente. Mas uma luz me surgiu dos anos 60. Tive que superar o desafio, e conjugar costumes, tradições e modos de vida de um povo que, embora embriagado pelo vício e prostituição, deixara página de sua história, vez por outra folheada por algum pesquisador.

 - Isso aqui foi a famosa Palha de Arroz. O nome vem das torrefações. Nesse meio funcionou o baixo meretrício, o Q.G. era o cabaré Barrinha, conhecido por “tabaco”, freqüentado pelos “porcos-d’água”, que eram os ajudantes das embarcações.

Paramos um pouco, sob a sombra de oitizeiros, direcionados para o sul, a uma distância de 200 metros. Articulando, mostrei-lhes onde funcionava a usina termelétrica, que fornecera energia para toda a cidade, até a década de 60, substituída por uma caldeira a diesel, vinda de Alagoas, não esquecendo seus ritmados apitos como de uma maria-fumaça, que até as 21 horas servia-nos de relógio, quando num toque de despedida saudava a noite, que paulatinamente ia em busca do novo dia. Nessa época, o rio Parnaíba era navegável. De longe também se ouvia o rugir dos vapores, lanchas e alvarengas vindos do sul do Estado, transportando mercadorias e passageiros, em direção ao Porto, que ficava limitando a Praça da Bandeira, por onde iremos passar.

Recomeçamos a caminhada. Ao cruzarmos a rua Paissandu, fizemos outra parada. Não poderia esquecer de citar que fora o núcleo dos tradicionais cabarés, como “Estrela”, “Fascinação”, “Imperatriz”, “Nove Horas”, “Gerusa”, “Raimundinha”, “Joana de Paiva”, entre outros. Subimos na rua em direção à Praça Pedro II. Na mente conduzia a surpresa que Alberto tanto esperava. Uma outra parada não fazia mal. Afinal, procurava descrever Teresina no passado, mostrando-lhes os pontos que serviram de concentrações desses personagens.

 - Onde estamos? Indagou-me.

 - Olhe, nessa casa comercial, “Rádio Ion”, foi o bar do Zé Cazuza. Às 12 horas de uma sexta-feira de 1948, o tenente Wanderley bebia aqui. Ao perceber a passagem de Zezé-Leão, o chamou. Depois de uma ligeira conversa, lembrou-lhe que em certa ocasião tinha-o prendido. Zezé, calmamente, embora entrecortado do insulto, perguntou-lhe se ia demorar no bar. Ele, ufano de autoridade, respondeu-lhe que sim. Zezé, enfatizou:

 - Voltarei logo.

Em questão de 20 minutos, o lúgubre estúpido, armado com um revólver 38, mudava o ritmo da cidade. A rádio Pioneira, que funcionava na rua Senador Teodoro Pacheco, aqui, próximo, em primeira mão, divulgou o acontecimento em reportagem exemplar de Carlos Said. No dia seguinte, as manchetes dos principais jornais: “ZEZÉ-LEÃO MATA TENENTE WANDERLEY E FOGE".

- Ah, foi assim! Sua fama chegou no Ceará, exclamou Alberto.

Paulo, aproveitando a deixa, nos contou que seu tio-avô, Cel. Domingos Gomes de Freitas, que residia em Tauá CE, tinha um criado que era o responsável pela compra de mantimentos (gêneros alimentícios) da Casa Grande. Segundo seu avô, certa ocasião, o criado, chegando de viagem, já na entrada do município, fez uma ligeira parada numa venda para beber uma pinga. Ao pagar a dose, foi surpreendido pois já estava paga. Ele então perguntou ao dono da venda o nome do desconhecido para agradecer. Esse, ouvindo, respondeu-lhe:

“José de Área Leão
A onça sussuarana
das matas do Piauí".
- E você quem é, caboclo?
Sem bater pestana, que nem um bom improvisador, informou-lhe:

“Eu sou um cachorro preto
da zona do cariri
acuador de onça sussuarana
das matas do Piauí”.
E até logo!!!

Zezé baixou a cabeça, bebeu outra pinga e exclamou: “muito bem!” Um dos seus seguranças indagou-lhe: “Pega o homem, coronel?!

-“Não. Cachorro que acua onça é respeitado".

Continuamos a caminhada. Logo estávamos na Praça Pedro II. Ali, para mim, foi um pesadelo. Não controlava as ideias, que se misturavam com as lembranças, dificultando concatenar o raciocínio, porque a Praça continuava sendo o cordão umbilical dos que edificaram a invejável história da terra.

De um lado, o Centro de Artesanato, guardando consigo lembranças do velho quartel da polícia militar. Do outro, o Cine Rex, solitário, que nem ancião, nem parecia que vencera os seus concorrentes: Cine Guarany, Olímpia, São Luís, Rio Branco, entre outros. Um cartaz lembrava Alfredo Ferreira que foi o fundador do cinema em Teresina, e o primeiro filme exibido, que era norte-americano e falado, tinha como título: “Doce como Mel.”

O Theatro 4 de Setembro, guardião da cultura, silencioso, trazia consigo recordações da luta ferrenha que travou para se desligar do cinema, para ser o que é: palco de espetáculos teatrais. Ao lado, a Galeria das Artes, num oculto quadro, descrevia o saudoso Bar Carnaúba, cercado de artistas e intelectuais. As horas corriam. Alberto, mergulhado no impressionismo, esquecia a compra do chapéu. Paulo não perdia nada da explanação. Anotava, na agenda, os subsídios para a história do município.

Guia turístico, contador de história ou causos. Sei lá quem eu era. Prosseguimos. Seus entusiasmos aumentavam. Embora quisesse parar a narração, não podia. Sempre algo chamava a atenção.

O silêncio recordava-me os tempos idos, quando menino, de calça curta, procurando remédio nas farmácias Santo Antônio, Lili e São Pedro, de Pedro Vasconcelos. Não encontrando, ia direto à farmácia “Coleta’, onde Jaime da ‘botica” fazia a manipulação de medicamentos. Naquele tempo era assim. Com essa reflexão sobre o passado, logo chegamos à Praça Rio Branco. Estava a esmo. Não parecia o logradouro de concentração de poetas populares, da ceguinha Maria Viana, no órgão, interpretando canções bregas; de aposentados driblando a velhice, tentando afeiçoar a nova geração. A brisa fria da tarde os enchia de indagações, estava num árduo ofício, não podia dissolver fatos do folclore teresinense.

-Nesse prédio da Caixa Econômica, funcionou o comércio do Carcamano, à noite tinha uma preta velha vendendo manuê; a fatia do bolo custava um tostão, e media um palmo. Tornou-se admirada pelo pessoal de vida noturna, através dos improvisos de propaganda:

“Chega gente, está na hora
Compre logo o manuê,
Compre mesmo, sem demora.
Manuê da preta velha
Tem segredo de essênça,
Inda mais com bom café
Muda até sua presença”.

Observa-se, de certa forma, que a cultura popular, destacando-se a poesia, nasce da necessidade de sobrevivência dessa gente. A não importância desses fatos contribui veementemente para o anonimato do autor, o que aconteceu com modinhas, adágios e alguns provérbios.

-Com certeza, enalteceu Alberto. Tive que ser breve nas citações, haja vista que algo mais nos aguardava. Estamos na Praça da Bandeira.

Recorda-me o pequeno zoológico, a feira dos pássaros e a do troca-troca. Nessa época chamava-a de bacia, por formar um círculo e ser de baixo relevo. Deu guarida a grandes circos, como Garcia, entre outros. Hoje, as grades que a cercam, nos reflete a ligeira impressão de que é prisioneira, e que nada tem de majestosa! Vê-se silente, concentra suas atenções no Teatro de Arena, palco dos acontecimentos culturais, de ação preservadora das tradições da terra.

Veja “Domingos Fonseca”, do alto, sussurra a poética sem jaça, em louvação aos poetas que versejam “sua poesia”, nos Festivais de Violeiros do Nordeste. Eram 17h30min, os pardais começavam a harmoniosa sinfonia sobre os frondosos oitizeiros, em contemplação a mais um dia que se findava. Apressamos os passos, cruzamos o Mercado Central, logo saímos no desativado Cais do rio Parnaíba. De retorno ao hotel, oportunidade em que falei sobre o Velho Monge, das extintas carrancas e dos banhos aos domingos nas piscosas águas, onde as coroas são atraentes praias, que desfilam preciosas sereias, musas inspiradoras que nos confortam a alma, principalmente quando se tem um bom anzol. Alberto, satisfeito, sorriu. Paulo ficou ansioso para conhecê-las. Seguimos para o hotel, contemplando o pôr do sol, rica beleza natural. Alguns minutos, como se fora beber água, os deixei à vontade. Próximo ao hotel, Alberto exclamou:

-Gostei bastante do passeio e da sua narração. Só me falta o chapéu!


Guaipuan Vieira