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23.10.18

DE POETA E LOUCO..., por Edmar Oliveira



"Leve um homem e um boi ao matadouro. 
O que berrar mais na hora do perigo é o homem, 
nem que seja o boi" 
(Torquato Neto)


Somos contemporâneos e conterrâneos meio atravessados. Cheguei a Teresina quando ele já tinha ido embora e a nossa diferença de idade era enorme na meninice. Quando o conheci, a Tropicália já tinha sido feita, eu já conhecia todas as músicas que ele colocou letras, ele já tinha voltado do exílio no exterior, suas colunas nos jornais – algumas lidas por mim – já tinham chegado ao fim. No nosso encontro eu tinha 19 anos e ele 26, já perto de morrer aos 28. Portanto conheci o Torquato maduro. Por isso só consigo pensar nele como muito mais velho que eu. Foram encontros demorados e intensos, onde fizemos jornais, cinema e conversamos em demasia. Eu ouvia muito, mas também falava no atrevimento dos jovens. Só muito depois soube que ele tinha escrito, àquela época, ao Hélio Oiticica dizendo que conhecera uns meninos incríveis no Piauí – referindo-se à turma do Gramma, jornal pra burro, que só fizemos dois números mimeografados e deu no que falar até hoje. E a gente sabia que estava diante de uma pessoa importante para o futuro, quando a Teresina, que hoje o cultua, ainda não gostava dele.

Eu já estava na faculdade de medicina quando o conheci e quis o destino que, quando vim  morar no Rio, fosse trabalhar e dirigir o hospício em que ele foi internado, tentando transformá-lo no Instituto Nise da Silveira. Depois, quando estava no Ministério da Saúde, me ocupei do fechamento do Meduna, hospício piauiense, onde ele também esteve internado. Portanto, cruza-mo-nos outras vezes, mesmo depois dele morto.

Por conta desse nosso destino, perguntam-me sempre sobre a loucura do poeta triste. Nessa homenagem, a Revestrés também pergunta – na voz do povo – sobre o poeta e a loucura. Na faculdade de medicina eu estava inclinado a fazer saúde pública, local de refúgio de “subversivos” nos anos de chumbo. Foi Torquato quem me chamou atenção para o campo psi, quando me aconselhou a prestar tenência de que a psique humana talvez fosse tão infinita quanto o infinito cósmico. Por ele ouço falar de arquétipos que só entenderia muito mais tarde, quando conheci Nise da Silveira.

Na saúde mental me dediquei à Reforma Psiquiátrica, combatendo os perversos manicômios e as rotulações psiquiátricas para justificar a internação dos que estavam à margem da sociedade. E é desse lugar que dou a minha opinião.

Torquato tinha uma intolerância ao álcool, o que não acontecia ao uso de maconha ou outras drogas. Com o álcool, além da intolerância, tendia também a um consumo excessivo e o pacato e manso cidadão às vezes exaltava-se além da conta. Nada que justificasse uma “dependência química” tão a gosto do saber psiquiátrico de então. No Engenho de Dentro foi internado duas vezes. Da primeira foi submetido a tratamento com drogas psicotrópicas de efeitos tão devastadores ou maiores do que a droga que alegavam combater. Não aguentou a barra e fugiu. Evadiu-se, no jargão psiquiátrico. 
Retornou por ter encontrado Oswaldo dos Santos (psiquiatra reformista de então, não tão conhecido, mas da importância histórica de Nise da Silveira) num bar do Leblon. Osvaldo lhe recomenda uma internação na Comunidade Terapêutica que criara então no Engenho de Dentro. Mesmo hospício, mas outra prática. E nessa comunidade mais liberal não deixa de travar um embate intelectual sobre a loucura com Osvaldo dos Santos, como está descrito em “Diários de Engenho de Dentro” – parte integrante dos “Últimos Dias de Paupéria” (sua única obra póstuma que foi autorizada): “o Dr Oswaldo não pode fugir, nem fingir: mas isso eu começarei a ver, de fato, logo mais quando teremos a nossa primeira entrevista”.

Mesmo numa experiência inovadora, como a Comunidade de Oswaldo dos Santos, Torquato percebia, com bastante lucidez, as contradições, a segregação psiquiátrica e a que classe esse saber sequestrava: “Não se fica trancado em celas aqui dentro: é permitido passear até rachar por um corredor de 100 metros por 2,5 de largura. Somos 36 homens aqui dentro, 36 malucos, 36 marginais – de qualquer maneira esperamos a ‘cura’ no sanatório como a sociedade espera que os bandidões das cadeias se ‘regenerem’, etc, etc. Aqui, o carcereiro é chamado de plantonista (...) Aqui, nesta vida comunitária, a barra é pesada, como eu gosto. Minha enfermaria tem 12 camas ocupadas por doentes mentais de nível que poderia muito bem ser classificado pelo IBOPE como pertencentes às classes C, D, Z. Estamos aí! Em cana. O chato é a comida, que é péssima (...) Eles não deixam ninguém ficar em paz aqui dentro. São bestas. Não deixam a gente cortar a carne com faca mas dão gilete pra se fazer a barba. Pode me dar um cigarro? Eu só tenho um maço, eu tenho que pedir porque senão acaba. Pode me dar as vinte?”

Poderíamos chamá-lo de um “observador participativo” no jargão das pesquisas sociológicas de hoje, mas o homem estava internado no matadouro das liberdades, junto com os marginais sociais. Sérgio Sampaio o homenageou numa canção que compreendia a experiência vivenciada pelo poeta: ”Tive internado ontem / Na cabine 103 / Do hospício do Engenho de Dentro / Só comigo tinham dez”. Uma canção miúda, mas com um significado intenso e muito real da experiência de Torquato: “a minha cama já virou leito” retrata a contradição da psiquiatria em transformar uma vivência humana em doença, como discursaria Foucault sobre a transformação da loucura em doença mental pela medicina; “saí do palco e fui pra plateia / saí da sala fui pro porão”, a transformação do artista na geleia geral brasileira onde alguém tem de exercer o papel de medula e osso, na frase bem sucedida de Décio Pignatari e que Torquato emprestou a vida no cumprimento da sentença.  

No Sanatório Meduna, em Teresina, acompanhei a sua internação. Foi voluntária, para escrever e pousar para fotos da revista Nave Louca, que teve um número único. Foi interessante ver a sua relação com os internos. A sua relação deliberada com a loucura. Ele praticamente administrava um batalhão de pacientes para carregarem mesas, cadeiras, máquina de escrever e seus objetos pessoais de uma sombra a outra melhor, onde conversava animadamente, escrevia e se preparava para as fotos.
Na internação que testemunhei, apenas vi uma deliberada vivência com a loucura. Uma atração fatal de um sujeito que tem na sua vida a maior obra daqueles anos infelizes. Essas impressões eu guardo de quando ainda não era um profissional da área.

Hoje, estou convencido que muitos foram internos de manicômios sem um diagnóstico condizente. Os sobrantes, os párias, homossexuais,  mulheres traídas, herdeiros indesejados, discordantes do regime. Principalmente os pretos, pardos e pobres como observou Lima Barreto. Quem se debruçar um pouco na história da psiquiatria vai perceber isso.

Mas a pergunta que sempre me fazem é se Torquato não era “pelo menos” um depressivo. Sempre respondo que éramos uma geração depressiva. Os anos de chumbo pareciam nos sufocar em demasia e, naquela época, não víamos a luz no fim do túnel. E um suicídio pode mesclar uma depressão com uma determinação existencial filosófica e não necessariamente ser atribuída apenas a um mísero diagnóstico.


Como disse antes, conheci o Torquato maduro, que apesar da pouca idade tinha participado de um movimento decisivo e diluidor (em sua concepção) da música popular brasileira e dos costumes nas artes em geral; esteve com outros artistas na linha de frente na passeata dos cem mil e ficou exilado em Londres e Paris; teve uma coluna de opinião (sobre tudo palpitava) em um dos maiores jornais do país; experimentou cinema e as multilinguagens da poesia; viveu os limites da condição humana (em suas letras o “vou pra não voltar” é uma constante). Como não querer experimentar os limites da loucura repetindo voluntariamente Antonin Artaud de quem era leitor?

Torquato quis viver a contradição entre o fascínio e o horror que a loucura desperta na nossa alma, porque só ao ser humano ela é possível. Como mais uma faceta do seu estar no mundo, onde suas ações se confundem com a obra. Porque o seu comportamento frente a uma sociedade opressora, castradora e violenta dos anos de chumbo foram gerados para “desafinar o coro dos contentes”. Manso calmo e cordato, não era necessário o álcool para o pacato cidadão desagradar um consenso que achasse burro (então não botemos a culpa na droga e sim no homem). Não aguentava a burguesia idiotizada e de bem com o regime, mas também não suportava a “caretice” da esquerda – para usar um termo da época – e seu reacionarismo cultural (no que teve toda a razão que o futuro lhe reconheceu).

Depressivo, esquizofrênico (como já lhe chamou alguém), dependente químico, bipolar não são rótulos diagnósticos da psiquiatria nos quais se possam enquadrar o poeta triste. Depressivo se é quando se vive em uma sociedade sem futuro; somos vistos como esquizofrênicos quando não nos enquadramos em uma sociedade doente; a droga nos faz experimentar uma outra sensação quando o real não nos basta; bipolar quando temos que animar a moçada e chorar no ombro amigo.

Quem captou um possível diagnóstico cultural de Torquato foi Paulo Roberto Pires na organização fenomenal de Torquatália. Dois volumes de uma bipolaridade incrível. “Geleia Geral” – o apanhado da miscelânea jogada para fora na imprensa, na poesia, nas artes & manhas em alegria geral. “Do lado de dentro” – o poeta triste, reclamando no ombro dos amigos o que lamentava dos acontecimentos que o entristeciam.

Loucura? Como a de todo poeta e louco que habitam o humano. Em Torquato Neto rompendo o limite com que estamos acostumados. Mas não chamemos o que nos é estranho de loucura. Ou a loucura é um dos inumeráveis estados do ser, como queria Artaud e foi compreendida na percepção de Nise da Silveira.



Edmar Oliveira (Psiquiatra, militante da Luta Antimanicomial, escritor. Autor de “Ouvindo Vozes” (Vieira & Lent, Rio 2009) e “von Meduna” (Oficina da Palavra, Teresina, 2011) sobre a prática em Saúde Mental; e dos romances “Terra do Fogo” (Vieira & Lent, Rio, 2013) e “Sitiado” (Chiado Editora, Lisboa, 2017). Texto publicado originalmente na revista REVESTRÉS, número 33, novembro/17, dedicada a Torquato Neto.


21.8.16

Teresina anivessariou: 164 anos

Teresina, por Dino Alves

Quando eu nasci Teresina ainda ia fazer 100 anos no ano seguinte. Palmeirais, meu berço, nem tinha dez anos que deixara de ser Belém. Sou filho de cidades novas. Quase contemporâneas. E nesta semana Teresina aniversariou em dezesseis. Cidade menina. Parece um passarinho que troca de penas ainda pela primeira vez. 

Conheci cidades na Europa que conservam suas ruas e algumas construções de muito antes dos portugueses chegarem por aqui. Mas Teresina está abandonado o traçado geométrico que o jovem Saraiva imaginou, antes de virar Conselheiro do Império. Oeiras, mesmo abandonada para dar lugar à nova capital resiste no seu casario colonial centenário. Teresina queimou suas casas de palhas antes de fazer 100 anos. E vai chegar ao segundo século absolutamente irreconhecível no seu passado. Tem jovens que nasceram na cidade nova que nunca puseram os pés na cidade velha.

Inexorável, Teresina atravessou o rio Poty para o leste e esqueceu a cidade velha. A festejada ponte estaiada funciona como um portal moderno que nos faz adentrar na cidade nova, o que para mim – que a deixei há quarenta anos – não faz qualquer sentido. Sou contemporâneo da ponte metálica que nos separava de Timon, da Avenida – que nem precisava chamar de Serafim –, da Igreja das Dores, da Amparo, da São Benedito, da Pedro II, do Clube dos Diários, da Rio Branco, da Estação, do Marquês, da Vermelha, da Piçarra, do Poty Velho, do Mercado Velho, do Mafuá, da Vila Operária, do Porenquanto – bairro de nome poético que era pra ser provisório e está perpetuado no esquecimento da cidade antiga.

A minha saudade está esmaecendo e ficando sem lugar.

Quando Teresina aniversaria me lembro do poeta Lucídio de Freitas:

Teresina apagou-se na distância,
Ficou longe de mim, adormecida,
Guardando a alma de sol da minha infância
E o minuto melhor da minha vida.

E eu sigo, e eu vou para a perpétua lida.
Espera-me, distante, em outra estância...
É a parada da luta indefinida,
É a febre, minha dor, minha ânsia...

Como são infinitos os caminhos!
E como agora estou tão diferente,
Carregado de angústias e de espinhos!...

Tudo me desconhece. Ingrata é a terra.
O céu é feio. E eu sigo para a frente
Como quem vai seguindo para a guerra...


em 21 de agosto de 2016

28.1.16

IMPRESSÕES DE VIAGEM, Edmar Oliveira


Uma amiga perguntou pelo Piauinauta, que não sai há quase um mês, e eu falei que estava enrolado com o lançamento do meu TERRA DO FOGO em Teresina e que tinha de ficar lá por uns dez dias. Ela então falou: “sei, você está de licença paternidade”. Acertou assim.

Cheguei para o “Sarau dos Amigos do Cineas” na Oficina da Palavra, onde o livro foi muito bem recebido. Passei toda a semana indo ao stand do Leonardo, que tem editado livros de escritores da terra (muito bem caprichados), autografando o TERRA DO FOGO, que por sinal esgotou o estoque de lançamento. Eu e Salgado Maranhão fizemos um bate-papo literário discutindo o meu livro e o dele (MAPA DA TRIBO) para uma plateia de cinquenta a sessenta pessoas às oito horas da manhã, o que me surpreendeu. Geraldo Borges estava lançando ESTAÇÃO TERESINA anunciado aqui no Piauinauta anterior.

Boas conversas com Paulo Tabatinga, Gisleno Feitosa, Rodrigo M Leite, Durvalino Couto, Feliciano Bezerra, Wellington Soares, Cineas Santos, Graça Vilhena, Paulo Vilhena, João Carvalho, Fonseca Neto, Alexandre Carvalho, Gilson Caland, Climério Ferreira e  Helô, Keula Araújo, Luana Miranda, Poeta Willian, a muito jovem e bonita escritora Fran Lima, Deusdeth Nunes e a turma do Conciliábulo, entre tantos outros que tive por bem encontrar. Fui entrevistado por várias emissoras de rádios que cobriam o evento, entre elas a de Marcos de Oliveira e a de Leide Sousa. E ainda deu tempo gravar um depoimento sobre o cinema marginal dos anos 70 para Patrícia Kelly e Morgana, que fazem um documentário como monografia do curso de história e jornalismo. As meninas são brilhantes. E eu estou tão velho que virei pesquisa. Mas é bom ser reconhecido.

Tinha tudo pra ficar contente. Mas não fiquei.

Me hospedei no Hotel Central, em frente ao Clube dos Diários, ao lado da Praça Pedro II e seu Teatro 4 de Setembro, complexo que foi outrora o centro pulsante e cultural da cidade. Após cinco dias fui para a casa do meu irmão Maioba angustiado pela solidão. A cidade entre os dois rios, que se estendia do encontro de suas águas no Poty Velho até a Vermelha (citada no filme genial do Torquato Neto) não existe mais. Foi definitivamente abandonada por seus habitantes que atravessaram o Rio Poty e ergueram uma cidade moderna na zona Leste. Mas que não tem nenhuma lembrança da minha cidade.

A minha cidade é uma cidade fantasma. Os poucos e pobres habitantes que ali ficaram não saem de noite nas suas ruas escuras com medo de assalto. Trancam-se em suas casas. Os de mais posses fazem cercas elétricas para protegerem a sua solidão. As ruas foram entregues ao drogados, aos desocupados que ocupam uma cidade sem lei e sem ordem. Em suas ruas desertas, mesmo ao meio dia, encontrei duas pessoas usando drogas. Não senti qualquer medo. Eram pessoas que eu conhecia da minha infância naquelas, outrora, ruas agitadas. Agora estavam os dois usando drogas numa cidade trancada com medo deles. Esquisito. Conversamos sem medo entre nós. Eu não me senti ameaçado por eles. Fiquei com pena de a cidade os terem tragado pela fumaça de um inexistente futuro.

Sem querer contrariar os meus anfitriões do Salão do Livro do Piauí (SALIPI), até entendo os seus motivos de o terem tirado da Praça Pedro II para que acontecesse este ano na Universidade Federal, que também fica na Zona Leste da nova cidade. Mas não concordo.

Desculpem, mas penso que a cultura abandonou também a cidade antiga. Não digo que ficou elitista porque a Universidade pública congrega estudantes de todas as classes. Mais ainda com o sistema de cotas. Mas acho que a cultura abandonou também a cidade antiga. É preciso que analisemos este fato mais devagar. Não vou fazer agora.

No livro que em Teresina fui lançar conto uma história triste que a cidade tinha esquecido. Os incêndios dos anos 1940. Acho que em breve um cronista vai contar essa história, também muito triste, do abandono da cidade antiga. A impressão que eu tive, e que me encheu de tristeza, é que ela não mais existe. E uma cidade sem passado é uma cidade sem futuro. 


em 15 de junho de 2014
em Piauinauta

23.11.15

ARNALDO ALBUQUERQUE [1]


Arnaldo Albuquerque

Ele sempre brincava de morrer. Teve um quase suicídio num acidente de moto e sua perna esquerda despedaçou-se tendo que ficar em cima de uma cama por quase um ano. Neste período produziu um desenho animado que impressionou todo mundo, ganhou prêmios e se perdeu, como tudo que ele fez. Nessa época ele estava no Rio e visitei-o em Botafogo, no apartamento da mãe. Na imobilização quase total dos membros inferiores, agitava o corpanzil, os braços e as mãos. Fazia careta na cara barbuda para que eu entendesse a técnica de animação usando caixas de sapatos, lâmpadas, cartolina, pincéis, tintas. Quando vi o resultado, muito depois, já em Teresina, não acreditei. Aquilo me impactou tanto! Era um carcará que atacava os bruguelos do sertão. Meninos recém nascidos. O carcará virava o Capitão América, representando o colonizador. Uma família, tipo Vidas Secas do Graciliano, andava na seca escaldante. O menino mata o Capitão América com uma baladeira (estilingue). O capitão América, abatido vira a águia símbolo dos americanos. Corte para uma cena onde a família faminta está assando a águia/carcará para matar a fome. Não é genial? E os anos 1970 estavam apenas começando.

Essa é apenas uma pequena aventura desse monstro que foi Arnaldo Albuquerque. A primeira revista de quadrinhos do Piauí foi ele quem fez. A capa era um exército de cartunistas nativos, comandados por ele Arnaldo, que com penas e lápis ameaçavam os heróis dos quadrinhos americanos num paredão como se fossem ser fuzilados. Com o sangrar dos pincéis e das tintas como faziam os cartunistas do Charlie Hebdo ainda agora e foram mortos por isso. Arnaldo atacou primeiro. E morreu no dia seguinte a Wolinski, um de seus heróis.

De outra feita organizou o que hoje se chama happening (é assim mesmo?) que na época nada entendi, mas que teve um resultado interessante. Ele confeccionou bustos de gesso dos amigos (eu era um deles) e espalhou esses bustos em pontos de grande concentração popular na cidade. No busto tinha um cartaz escrito “quebre-me” ao lado de um porrete. Ele filmava as reações. Interessante que no final alguém quebrava o busto e era mais interessante quando conhecia o retratado... Sacaram?

Todos os filmes super-oito da época tiveram a sua câmera. O "Adão e Eva” com Torquato Neto e o "Terror da Vermelha" – único filme que Torquato dirigiu, inclusive. No filme do Galvão, filmado aqui no Rio, tem uma cena impagável. A câmera de Arnaldo faz um zoom na buceta nua de uma estátua do Jardim de Alá. Arnaldo para o zoom, marca o local com os pés na areia, coloca ketchup na vagina da estátua, volta para o lugar e conclui o zoom. Efeito: surge sangue na vagina da estátua como por encanto e não se percebe o corte. De gênio.

No show musical “Udigrudi” na boate do Zé Paulino, Arnaldo fez uma cenografia detalhista de um cabaré da Paissandu (o baixo de Teresina) no palco. E que girava em dois ambientes. Coisa de profissional absoluto.

E fez muito mais. Desenhou, pintou e bordou para uma época desbundante. Mesmo com ele ainda vivo, sempre confessei que foi o MAIOR da minha geração. Eu sei que Teresina às vezes é cruel e pode asfixiar seus habitantes nos enredos de suas lendas.

Uma vez, por causa de uma paixão, comprou um revolver e ameaçava se matar todo dia. No começo, Assai Campelo dormia com ele e se embriagavam juntos. Desistiu e ele não se matou. Era uma brincadeira.

Um pessoal da nova geração o descobriu e os meninos estavam organizando seus guardados já quase perdidos. Fizeram um documentário sobre sua vida já agora perto do fim, que ainda não vi.

Da última vez que o vi foi que entendi a brincadeira de morrer. Estava se matando aos poucos, afogado no álcool. Ontem recebi a notícia de sua morte. Foi como se apagasse um bom pedaço do meu passado. O que posso fazer além de chorar se morro também um tanto na morte dele?


ARNALDO ALBUQUERQUE [2]


O sujeito era tão intenso que uma crônica ou duas não dão conta da sua peregrinação num destino que carregava cravado no umbigo. Sua história nos quadrinhos e no desenho animado deixou herdeiros que reconhecem a filiação e uma tese de mestrado faz uma análise do seu lado marginal à marginalidade.

Fizemos um jornal na década de 1970, que circulou apenas duas vezes, mas nomeou uma geração: “Gramma”. E as duas capas eram dele. A do número um, aqui reproduzida, é uma obra prima. No nome Gramma detalhes podem ser acompanhados com uma lupa de cenas proibidas na nudez com erotismo digno de um Wolinski. Entre às cenas de sexo, o coração de Jesus pende do meio do primeiro M com a inscrição blasfêmica “o coração de Jesus era de pedra” e na última perna desse primeiro M a própria face do Cristo contrasta com o inferno que queima a lascívia do outro M. Mas no conjunto das letras o mal parece vencer o bem da religião. As outras letras parecem vencer o M do Cristo, mas é nele que se pode ler “a maior curtição”. O desenho central parece um autorretrato que arranca o coração do peito num rasgo tão grande que expõe as vísceras abdominais de forma chocante. Singelas flores emolduram o quadro.


Essa capa faz prescindir o conteúdo do jornal na temporalidade. É o que fica. É a transgressão que nos representa, toda uma geração, num desenho dele. Na mesma época era fundado o Charlie Hebdo na França, e aqui na terra “O Pasquim” já era reconhecido por dialogar com a contracultura. Era no desenho do Arnaldo que nós gritávamos, no estado mais atrasado da federação brasileira, que o sertão entrava no cenário da contracultura.


E ele continuou desenhando. Emplacou alguns cartuns n’O Pasquim. Fez ilustrações para livros de contos, como as que publicamos aqui. No traço a violência e o erotismo. Duas formas de protestos incontestes.


Mas foi agora, já depois de sua morte, que tomei conhecimento, pela internet, de um grande e futurista desenho. Um felizardo declara que ganhou o desenho do próprio Arnaldo em 1982. Em um cenário futurista, que lembra Metrópolis do Fritz Lang, prédios de Teresina e Timon (cidade fronteiriça do Maranhão) fazem um paredão às margens do Rio Parnaíba. O leito do rio secou e um fiapo de esgoto corre por baixo da Ponte Metálica (símbolo da cidade, quando ainda não tinha a ponte estaiada). Premonição do artista?


Depois silenciou. Parecia que a obra tinha ficado pronta. Só caminhava de casa para o botequim do meio do quarteirão. Tomava uma ou duas pingas. Bastavam. E o caleidoscópio do artista girava num mundo que ele não quis habitar por ter sempre se mantido à margem. Ele só saiu do nosso campo visual, mas continua à margem. Agora na terceira margem do rio, como no conto do Guimarães Rosa.

21.11.15

ESTILHAÇOS: ENTRE O MARGINAL E O EXPERIMENTAL



O vídeo-documentário “Estilhaços: entre o Marginal e o Experimental” tem como objetivo geral relatar a produção do Cinema Experimental, posteriormente chamado de Cinema Marginal, feita com a câmera Super 8, em Teresina, no início dos anos de 1970. A ideia de fazer cinema superoitista surgiu de um grupo formado por oito jovens que eram adeptos à cultura marginal. Como objetivo específico, buscou-se retratar o movimento através da apreciação de três filmes que fizeram parte do ciclo de produção do grupo. A narrativa é construída por meio dos depoimentos de alguns dos produtores, diretores, atores e roteiristas dos filmes da época, através de entrevistas em profundidade realizadas com base na pesquisa documental e fílmica. Ao final do trabalho foi possível retratar o sentido de Cinema Marginal em formato audiovisual, através da junção da significância do movimento cinematográfico dada pelos produtores e pela análise geral de um historiador pesquisador da área.

Sob a influência das produções cinematográficas nacionais e com uma experiência junto aos cineastas nacionais como Ivan Cardoso e Glauber Rocha, Torquato Neto veio à Teresina com a ideia de fazer cinema com o recurso que tinha: a câmera Super 8. O objeto privativo da Kodak era de fácil manuseio e de custo baixo em relação às outras câmeras, porém, ainda era pouco acessível e nasceu com o objetivo de fazer pequenos registros (cada rolo de filme Super 8 tinha apenas 3 minutos) de eventos familiares, mas com o advento do experimentalismo cinematográfico foi utilizado para fazer filmes um pouco mais longos na intenção de expressar as nuances juvenis daquela época. Aos seus 28 anos, Torquato Neto se uniu a outros jovens piauienses de classe média como Edmar Oliveira, Arnaldo Albuquerque, Durvalino Couto Filho, Paulo José Cunha, Carlos Galvão, Francisco Pereira e Noronha Filho para fazer cinema com a Super 8 no Piauí.


Direção e roteiro: Patrícia Kelly
Produção: Morgana Castro e Alison Santos 
Imagens: Alison Santos, Morgana Castro e Patrícia Kelly 
Edição: Dionísio Costa

30.7.15

RIO SECO





Lembro de quando naveguei este rio nos vapores de Palmeirais. Navios de ferro fundido que a queima de lenha (depois o diesel) movimentavam gigantescas pás laterais singrando as profundas e caudalosas águas do Parnaiba. Em camarotes ou redes nos convés viajantes acompanhavam as margens de canaranas, pescadores em pequenas canoas e, nos portos, as mulheres batiam roupa e secavam no quarador. Hoje o rio morre asfixiado em bancos de areia. A reserva hídrica da minha terra se esvai. A capital do Piauí se encostou no Rio porque ele era o caminho que levava ao litoral e ao fundo do sertão, no interior. Até hidroavião pousou nas suas águas. Hoje esquecido morre numa cidade que não cuida da sua história. Só a saudade pode atestar o que foi outrora um Parnaíba que agoniza no cais de uma cidade que não mais o quer.
Fotografia via blogue do Kenard Kruel

6.9.14

OS DOIDOS DA MINHA MEMÓRIA, por Edmar Oliveira


Manel Avião, Manelão, avião, ão, ão. Vrummmmm. E lá se ia Manel conduzindo um avião imaginário na mão direita, que já, já, virava asa e, abrindo os braços em duas asas, Manel era o próprio avião, que encantava os meninos que viam o Manelão como cena de cinema que ele fazia o voar na imaginação. Manel voava de verdade. E a lenda se espalhava na cidade. Na Piçarra, diziam, invadiu uma casa e roubou um rádio. Na Palha de Arroz seduzia meninos e meninas, que as mães zelosas não deixavam chegar perto do avião. Podiam ser levadas pra longe e se perder na escuridão da noite. Manel contava histórias. Histórias de cinema que se passavam em Teresina. Não sei que fim levou. O avião, com certeza, lhe levou embora...

Nicinha, pequenina, enfeitava-se de fantasias de carnaval durante todo o ano. Todo dia, toda aglomeração, discurso político, conversa de bêbados, papo de vagabundos, qualquer ajuntamento de gente fazia aparecer o pipoqueiro, o sorveteiro e Nicinha. E aí vinha ela. Numa elegância exagerada, maquiagem intensa, óculos de gatinha, fita colorida no cabelo, vestido de tafetá azul celeste. Qualquer que fosse o dia do ano Nicinha vestia a fantasia da terça gorda do Carnaval. Me encantava a sua presença. Era a marca de que o que estava acontecendo tinha importância. A porta do Teatro, o Bar Carnaúba, a Pedro II, o Café Avenida, eram lugares que só existiram pela presença de Nicinha. Me contaram que teve uma morte violenta com requintes de crueldade. E o criminoso nunca foi encontrado. Quem poderia fazer mal a um beija-flor tão bonito? Mas na minha infância tinha menino que engolia coração de beija-flor pra ficar guabes. Guabes, pra quem não conhece piauiês, é ficar com boa pontaria na baladeira. Baladeira, um piauiês tão bonito, é estilingue ou bodoque noutras pronúncias. E Nicinha e o beija-flor nunca fizeram mal a ninguém, mas morreram do mesmo jeito...

Bibelô era um bibelô. Genial quem inventou o apelido. Era um homem pequeno e delicado que se vestia de mulher, mas de forma tão fina, delicada, suave, diria mesmo harmoniosa. Não tinha o exagero de Nicinha. Era uma espécie de Carmem Miranda contida, pois que não tinha o exagerado da notável. Seus balangandãs, quinquilharias, indumentárias e adereços não agrediam aos olhos. Mais parecia um Matogrosso no início de carreira nos Secos & Molhados. Às vezes um turbante lhe tornava palestino. Uma maquiagem discreta fazia aparecer a Maria Bonita. Lembro da tristeza nos seus olhos. Aparecia e desaparecia nos portões, nas casas, nas mercearias. Pedia um café. Comentava alguma coisa e ia embora. Parecia não querer incomodar com sua presença. Mas assim mesmo tinha inimigos implacáveis que o perseguiam. Lembro de alguns de seus machucados provocados por agressões. Ele incomodava por ser diferente de tudo. Não era um travesti transformado pelas roupas femininas. Parecia um Rodolfo Valentino maquiado para entrar em cena. Não sei quando saiu de cena da cidade. Por certo com a discrição que o caracterizou...

E outros existiram. Mas estes marcaram minha existência de forma decisiva. É como se eles reafirmassem Teresina dentro de mim. E na cidade de minha infância, embora pequena, nunca encontrei os três no mesmo espaço. Cada um tinha seu pedaço de cidade para fazer sua aparição e performance. Só consigo reuni-los na memória: Bibelô dos olhos tristes, Nicinha com alegria estampada no corpo pequenino de beija-flor, Manelão voando no céu azul intenso das nuvens de algodão da cidade verde...





7.12.11

CANTO EM TERESINÊS, Edmar Oliveira


das carnaúbas da minha terra
quase em disco de cera escutei
minha bandeira verdamarela
carnaubei palmeira bela
no porenquanto dos meus momentos
morrurubú de tantos ventos
gregoriei de água e vela
e aprofundei minha'alma nela
cidade em rio mergulharei
crispim do mar que nunca erra...


em Livreto do XXXIV Sarau Lítero-Musical Ágora
Teresina, agosto de 2010

11.11.11

TER-TE TERESINA


para manuel avião, nicinha e bibelô


ter-te
ter a sina da dívida
que tenho contigo
de não te devolver o amor que tens em mim

na marca dos quintais,
do cais do rio, do mercado,
o bolo-frito com café preto,
o troca-troca das bicicletas, dos passarinhos
trocar olhares na Praça Pedro II
até às nove horas,
depois descer a velha rua Paissandu
de romances venéreos,
aventuras nos seriados do cinema
e nas tertúlias do Clube dos Diários...

ter-te
ter a sina dividida
que tenho o castigo
do filho ingrato que mais usufruiu o teu caminho
na marca dos quintais
do beira-rio, do pecado,
Maria Izabel e o segredo
no troca-e-rouba um beijo, a flor dos descaminhos
roubar pitombas nos quintais
após às nove horas,
depois descer à Palha de Arroz
em encontros etéreos,
princesa dos rios de alfazema
não-se-pode um cavaleiro solitário...
ter-te
ter a sina dividida na dívida
personagens de tuas ruas,
muito mais te deram na tua tua construção
(sem nada em troca)
do que eu, que muito te tenho em mim...



em TERESINA: Um Olhar Poético
Teresina: FCMC, 2010
Organização de Salgado Maranhão

14.10.11

MARIA TIJUBINA, Edmar Oliveira


Quando na madrugada de meninos boêmios a fome apertava, os filhos da zona norte só tinham uma direção: Maria Tijubina. Não era bem um restaurante. Uma venda num casebre que se equilibrava num barranco acima da linha do trem. Mas a quem Maria fazia deferência, podia examinar as panelas, nas trempes dos fogões, se a Mão-de-Vaca ou a Panelada, qual iguaria estava mais apetitosa. Eu era um destes fregueses, ainda menino, que Maria dava importância. E qual o meu orgulho de anunciar pra rapaziada que me acompanhava: hoje é dia da Panelada, tem um cheiro ótimo. – Maria, uma panelada e um arroz a mais. Este “arroz a mais” era a grande invenção da Maria. Com dinheiro muito curto nos bolsos a molecada desdobrava um prato feito pra dois ou três em um rango para quatro ou seis. Verdadeiro milagre da Maria na multiplicação da comida farta.

Maria Tijubina era antenada. Conhecia as turmas, os grupos, as encrencas e as fofocas de todos. E passava informação a (de) uns e outros, sentada na mesa do freguês, com seu paninho de espantar muriçocas, e que servia também pra limpar as mesas e pegar as panelas quentes. Na venda da Maria matava-se a fome e a sede de informação. Ali se sabia que a namorada de um tinha saído com outro. Que o respeitável político amancebara-se com aquela loura que uns e outros davam em cima. E, pior para a reputação de alguns, doutor Fulano, casado e pai de filhos, passou ali, numa dessas madrugadas, em companhia de suspeita sexualidade. Coisas simples da vida de província. E a gente perguntava pelos colegas e Maria respondia que este já passara ali torto e, com certeza, foi dormir; que aquele outro, certamente, ia chegar; que esse outro viajou pro sul.

A Panelada e a Mão-de-Vaca da Maria eram as iguarias das noites no Mafuá. Um mercado que virou bairro. Um bairro que virou conto. Assaí Campelo, figura que se confunde com a própria Teresina, morador do Mafuá, e vizinho do mercado, a pessoa mais importante da zona norte de Teresina, levou Caetano Veloso e Gilberto Gil e uns e outros artistas que visitaram Teresina pra comer panelada na Maria. Eles nem sabem do quê a comida é feita, mas Maria mostrou a tijubina pro Gil e pro Luiz Melodia...