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2.2.16

II OS DIAS, H. Dobal




Sobre as águas de um rio onde vareiros
silenciaram suas mágoas.
Sobre outro rio cantado
por lavadeiras,
e o riozinho proclamado
pelos buritizeiros,
sobre os brejos sem nome
onde os riachos começam,
sobre todas as águas
o espírito perene.

Sobre o espírito das águas
que memoraram os dias,
sobre um rio perdido onde os bichos do mato
beberam o fim da tarde,
sobre um vale pastoral onde os rios pensam
sobre a música de vida
dos rios reduzidos a um nome
                                         PARNAÍBA
sobre os rios plenos,
os dias consumidos.



H. Dobal
em O DIA SEM PRESSÁGIOS
Rio de Janeiro: Editora Artenova Ltda. 1969

1.8.15

H. DOBAL - UM HOMEM PARTICULAR






LAMENTAÇÃO DE PIETER VAN DER LEY
NO OUTEIRO DA CRUZ / H. Dobal


Eu, Pieter van der Ley,
soldado da Holanda,
trazido até aqui
na luta santa contra os papistas,
mas também movido
pelo sonho da aventura e da riqueza,
fui morto aqui numa emboscada
dos guerrilheiros do Brasil.
Fui morto aqui neste lugar
depois chamado Outeiro da Cruz
em memória desta emboscada.
E aqui me tenho para sempre.

Os meus derrotados camaradas regressaram.
Eu sou o filho pródigo que os pais nunca reviram.
A violência do sol, o peso das chuvas,
o tempo tropical não me desgasta.
Mas perdi para sempre o claro-escuro da Holanda,
os canais onde a água refletia as tabernas,
perdi as planícies onde o gado frísio
pastava na bruma,
onde o gado malhado
transformava em leite a pastagem gorda.
Aqui neste Outeiro da Cruz,
hoje envolvido,
hoje engolido pela cidade,
passam os que procuram o aeroporto e me deixam
as suas lições de bem partir, de mal partir.
Aqui por perto manobram os caminhões de refrigerantes.
Eu não parto. O meu refrigério é apenas
esta brisa triste trazendo os adeuses do mar.

Eu, outrora chamado Pieter van der Ley,
espírito preso neste Outeiro da Cruz,
cumpro uma pena interminável,
expio um pecado de que não me lembro.
O meu corpo de vinte anos,
depositado neste chão,
composição que se decompôs rapidamente,
o meu corpo me abandonou.
A minha pele clara, os meus olhos claros,
os meus músculos, os meus cabelos ruivos
me abandonaram.
E aqui me tenho: menos do que sombra.
Corpo etéreo, fantasma, alma penada,
que ninguém vê,
que ninguém ouve,
que ninguém conhece,
neste exílio post-mortem.



[...]



Gênero: Documentário
Direção: Douglas Machado
Elenco: H. Dobal, Alberto da Costa e Silva, Álvaro Pacheco, Cineas Santos, Olga Savary, Ivan Junqueira, Wilson Martins, João Cláudio Moreno

26.7.15

O MENINO DA PACATUBA



Dos meninos consumidos no sol da Pacatuba ficaram lembranças. Dessas lembranças Paulo José Cunha constrói o seu universo poético. Delas e da evocação do País do Piauhy. Tudo na maneira de Geraldo Melo Mourão (o que glorificou o País dos Mourões) e Manoel de Barros (o que expôs a Gramática do Chão) e no mesmo plano elevado.

Uma das funções da poesia é desencantar lembranças, sujeita, no entanto, ao risco de tornar-se apenas uma prosaica enumeração. PJC cumpre esta função, evitando este risco. O seu mundo poético surge da poesia intrínseca das lembranças, realçada pelo poder que as palavras adquirem no contexto. As palavras vivificam as imagens e as pessoas: atrás da igreja das Dores o grotão por onde corriam as águas do inverno, a suave ladeira da Estrada Nova por onde se chegava à Pacatuba, onde hoje deve vagar o espírito irreverente de Vitinho, que ali frequentou a aula de D. Maria Patu.

A tia Maria, a branca de fala mansa (para nós era a comadre Maria), o seu Raimundo Luço (primeiro cliente de um advogado que mais tarde reconheceu não ter os defeitos necessários para vencer na profissão e se bandeou para a categoria dos poetas). PJC saca da memória um verso de Quasimodo (“la dura um vento che ricordo aceso”); na Pacatuba havia no máximo a brisa de maio que empinava os papagaios de papel.

O menino da Pacatuba, a infância restituída, volta, das areias do tempo, nas cercas de melão-de-são-caetano, na figueira ao lado da casa de seu Pombo, no terreno baldio da esquina do quarteirão, nas tijubinas, nas mangas verdes, comidas com sal, às escondidas, enquanto o Parnaíba, o rio grande dos tapuias, no fundo das ribanceiras, rola o seu dia perene.



H. Dobal
Prefácio do livro O perfume de Resedá, de Paulo José Cunha
Teresina: Oficina da Palavra, 2009

17.10.13

INTRODUÇÃO




Esta cidade ardente, poucos homens a trazem na lembrança ou no coração. É uma cidade simples, tranquila. Aqui não há becos nem ladeiras, mistérios nem tradições. Cem anos não deixam acumular muita cousa na vida de uma cidade que já nasceu velha e que sempre teve o ar de uma aldeia grande, como notou um viajante ilustre e mal-humorado. Um ar que se transforma aos poucos com o correr do tempo e esta transformação indecisa mais o progresso ajudam a descaracterizar a cidade. Tem suas diferenças, é claro. O clima, as condições geográficas, a vida, as árvores. Outro viajante ilustre, porque gostasse de adjetivos ou porque realmente o impressionaram tantas copas verdes sobre os telhados desbotados, chamou-a Cidade Verde. Os naturais gostaram, o nome ficou. Hoje não existe mais aquele imenso arvoredo a que se referiam os cronistas do tempo, mas ainda se pode dizer que é uma cidade velada pelas árvores. Mangueiras e oitizeiros dão a sua sombra como frágil proteção contra o sol. O sol é muito claro, como se estivesse sempre em desespero, há excesso de luz nesta cidade. As cores se afirmam definitivamente, mas há predominância de tons claros. As casa claras e baixas, as roupas claras, os dias límpidos. Raros dias cinzentos e as chuvas, embora não sejam raras, chegam a ser uma distração. A marcha das estações é quase imperceptível. O tempo das chuvas e o estio. Em maio chegam brisas do Atlântico e dão à cidade um leve toque de primavera. Nesta época as madrugadas deixam um neblina tênue, que marca o fim do inverno. Depois é a soalheira. Meses mais tarde nuvens se formam ao nascente e começam as chuvas outra vez. Então alguns contemplativos descobrem que há bandos de aves voltando do Maranhão, cruzando o rio para o Piauí. São os patos e marrecas que voltam para as lagoas distantes. Assim se vai o tempo e a vida. O ritmo da vida é muito calmo. Os dias passam serenamente vazios, os rios descem o seu caminho, as nuvens seguem o seu curso, grandes cúmulos brancos na pura duração do azul. Os cafés se enchem de homens, os homens estão cheios de pó e de retórica, discutem política, negócio, amor e a vida dos outros. Há praças para os namorados, a quem a polícia não permite muitas expansões, cinemas, a missa dos domingos, os bailes, a cerveja e em qualquer lugar há sempre a música de um alto-falante. A cidade é aberta, sem segredos, acolhedora. Tem um ar de família que vem do fato de que quase toda gente tem relações ou se conhece. O que dá origem a uma intimidade deliciosa, como a daqueles dois que conversam em um dos cafés mais movimentados da cidade. Dizia um: "Ele é cretino, convencido, besta". Veio o garçom, bota a bandeja na mesa e entra naturalmente na conversa: "Quem é?" O que estava contando também responde naturalmente: "O Dr. F...".
em Roteiro sentimental e pitoresco de Teresina 
Prosa reunida | Teresina: Plug, 2007 [1952, 1ª edição]

APONTAMENTOS PARA UM POEMA DO RIO POTY




Mais na lembrança do que na paisagem
desce no seu caminho vagaroso um rio pobre.
Lento fluir de águas quase mortas.
Rio Poty
rio sem história
rio sem memória.

Um sinal de beleza nesse rio é uma cousa exterior a ele
e está confinado em palavras - o Porto do Noivos. Porque a
beleza não está propriamente no porto, mas nessa
denominação com tudo o que ela sugere de lirismo.

Algo fantástico nesse rio mal nutrido, meio devorado pelo 
sol: as arraias enterradas na lama que, há muitas águas
passadas, assombravam os moleques da manhã.
Como um pássaro mudo o rio humilde vai passando pelos
espaços do seu silêncio.
Rio Poty
rio sem surpresa
rio sem memória.



H. Dobal
em Obra Completa - I (poesia)
Teresina: Corisco, 1997

OS CABARÉS



Rua Paissandu via Bernardo Sá Filho


O lado cabaré merece uma referência que corresponda à sua importância, que esteja de acordo com o seu papel de destaque, com íntimas ligações e reflexos na vida da cidade. Aqui se pratica intensamente esta espécie de amor e o número de profissionais que existe, não só nos cabarés, mas também fazendo esse jogo do amor é grande. Um sociólogo apresentaria o fato como  índice de pobreza da cidade. Os cabarés ou pensões de mulheres, que têm menos o aspecto de bordéis, no mau sentido, do que de night-clubs ou dancings, ficam localizados em zonas determinadas e são mesmo chamados a "zona". Quase sempre tomam o nome das proprietárias: Raimundinha Leite, Maria Aguiar, Zezé, e são constituídos de restaurante, botequim, mesas ao ar livre, e o salão de danças, que é, às vezes, decorado com pinturas, obra de artistas simples e inspirados em motivos ainda mais simples: paisagens mansas. Têm orquestras próprias ou eletrolas com alto-falantes e as músicas, quaisquer que sejam, sofrem no ambiente a transformação de uma vaga nostalgia. Têm ainda uma cousa que lhes diminui a brutalidade ou a mesquinhez: não é claramente um comércio. Para o sucesso faz-se preciso certa dose de corte e de galanteio.

Um velho piauiense, que atingiu alta posição em um os poderes da República e que há anos não vinha a seu Estado, perguntava a seu sobrinho como era a vida noturna de Teresina. O rapaz, profundo conhecedor, com a experiência de muitas noites de rondas pelos lugares mais secretos, se excedia em detalhes. O figurão não continha o entusiasmo: "Nem em Paris, meu filho! Assim nem em Paris!". Talvez no seu entusiasmo estivesse muita saudade da terra e da mocidade, talvez estivesse sendo sincero, porque, na cidade, participam do seu sentimento quase todos os solteiros e muitos casados. Foi em um cabaré que dois jovens políticos festejaram, estrondosamente, as suas candidaturas a importantes cargos da administração pública. Entretanto não há necessidade de motivos: mesmo sem eles as comemorações se sucedem, as farras se realizam, os cabarés vivem cheios e constituem na vida da cidade talvez o maior centro de atração. As mulheres, com aquele ar inconfundível que as distingue imediatamente, são discutidas, tornam-se conhecidas e algumas chegam quase a se envolver em uma aura de lenda, como a Rosa Banco, que dava uns famosos bailes verdes em que todos os participantes se vestiam desta cor. Figuras que toda a cidade conhece e comenta, uma parte só conhece as referências, este material humano é de todos os tipos, se divide em escalas para todos os gostos ou possibilidades e, naturalmente, sofre a inconstância e as dificuldades próprias do seu gênero de vida. Há duas zonas principais: a da Rua Paissandu e adjacências, próximas ao Parnaíba, mais antiga, afada e numerosa, e a da Piçarra que tem a preferência de certo número de frequentadores, e onde se destaca a Casa Amarela.

em Roteiro sentimental e pitoresco de Teresina 
Prosa reunida | Teresina: Plug, 2007 [1952, 1ª edição]

ROTEIRO SENTIMENTAL E PITORESCO DE TERESINA




É uma cidade, sem dúvida. Tem um comércio muito barulhento e uma indústria muito modesta. Tem lugar para os mortos: dois cemitérios, o da Vermelha onde são enterrados os indigentes, mas não somente eles, e o de S. José com muros brancos e portões de ferro. São cemitérios brasileiros sem o lirismo e a estética dos americanos. Tem as associações: religiosas, profissionais, filantrópicas, culturais, que também nesta cidade os homens são gregários: A Academias de Letras, a Ordem dos Advogados, o Rotary Clube, a Maçonaria. Tem o seu tédio aos domingos e os lugares onde se pode enganá-lo: a Socopo, projeto de uma cidade jardim a alguns instantes de Teresina, na estrada de União, com uma piscina de águas sulfurosas e outras instalações que transformaram em balneário o antigo centro de seu Juvêncio. Os que gostam do campo podem dar um passeio a Buenos Aires, um posto do Ministério da Agricultura, que fornece verduras e frutas à cidade e onde um tostão ainda é dinheiro: com ele podem ser comprados cinco maxixes.

E como é preciso chegar a uma conclusão há o recurso de citar Camus, por intermédio de Sartre: “Um processo cômodo de se conhecer uma cidade é procurar como se trabalha nela, como se ama, como se morre”. Talvez seja esta a verdade: só diretamente é que se pode apreender a vida íntima e real de uma cidade. Compreender as suas cousas. Saber que aquela casa da Rua Bela com uma frase na platibanda: “Homenagem ao lugar em que nasceu Luiz José de Souza”, representa apenas uma singela homenagem do dono da casa ao local em que nasceu o dono da casa. O dono, de bigodões, que é conhecido pelo nome mais modesto de Luiz Cabelo Duro, é relojoeiro de profissão, mas não conserta relógios de pulso porque é contra esta “moda idiota”. Nos seus vagares se apaixona pela astronomia e prepara o dossiê da cidade contando que terríveis segredos só a posteridade saberá um dia. Enquanto isto a cidade vive: a política picha os muros e solta foguetes. O espocar dos foguetes e ronqueiras marca todas as ocasiões festivas. As faíscas são derrotadas pelos pára-raios e o próprio calor pode ser combatido: as redes facilitam a vida. Desde que os armadores estejam na altura e na distância ideais, que lhes determina Huguinho, o maior conhecedor: a sua altura mais quatro dedos e quatro passadas suas mais um pé. Depois disso tudo estará bem. O carnaval é fraco. Também o futebol. A luz elétrica é boa, a água é melhor. O céu é imenso para os aviões e os urubus e nele um barbeiro da Rua Grande já viu o disco voador. A cidade completa cem anos. Já apareceu em um baião formoso e na Melodia Moura, de Mario de Andrade, Laura, que foi empregada na farmácia de D. Lili, falava de Teresina. O boi “Riso do Amor” dança em junho. Na última noite do ano dançam o réveillon no Clube dos Diários. Os dias se sucedem com o mesmo sol, as noites acompanham a lua. A vida é calma.

em Roteiro sentimental e pitoresco de Teresina 
Prosa reunida | Teresina: Plug, 2007 [1952, 1ª edição]

H. Dobal - síntese biográfica




Hindemburgo Dobal Teixeira (17/10/1927 – 22/05/2008) nasceu em Teresina – PI. Poeta, cronista e professor. Formado em Direito. Foi um dos fundadores do Movimento Meridiano. Bibliografia de H. Dobal: O Tempo Consequente (1966), O Dia Sem Presságios (1970, Prêmio Jorge de Lima), A Viagem Imperfeita ( (1973), A Província Deserta (1974), A Serra das Confusões (1978, editada por Cineas Ssntos, com ilustrações geniais de Albert Piauí, saiu originalmente em A Província Deserta), A Cidade Substituída (1978), El Matador (1980, em forma de folheto, com xilogravura de Fernando Costa, editado por CS, saiu originalmente em O Dia Sem Presságios), Os Signos e as Siglas (1986, ilustrada por AP e editado por CS), Uma Antologia Provisória (1988), Cantiga de Folha (1989), Roteiro Sentimental e Pitoresco de Teresina (1992), Ephemera (1995), Grandeza e Glória nos Letreiros de Teresina (1997), Lírica (2000), Um Homem Particular (contos, 1987, ilustrado por AP), Gleba dos Ausentes - Uma Antologia Provisória (2002). Entre as antologias que tem a poesia de H. Dobal incluída, Desde Planalto Central - Poetas de Brasília (2008, organizada e apresentada por Salomão Sousa).