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29.1.16

GARAPEIRA ESTUDANTINA, José Ribamar Garcia


                                                                     "Filomena cadê o meu / Filomena cadê o meu
                                                                     O meu beijo gostoso / Que você prometeu."


A letra dessa canção, tocada na amplificadora instalada em frente à Merenda, tinha esse refrão, que papai acompanhava num assovio quase inaudível. E, quando não havia freguês, ele ficava na porta da garapeira, com a mão esquerda apoiada no portal e o corpo um pouco inclinado, relaxado, apreciando o movimento da rua, que chamava de cinema. Dali observava também o filho, que se distraía no velocípede, circulando o quarteirão. Este velocípede fora um presente ao menino por ter tomado uma série de injeções sem fazer escândalo. Palavra sua era honrada, custasse o que custasse.

- Macho, mesmo, o meu filho!

A sabedoria: louvar as boas ações e rebater as más no momento exato, de forma que não ficasse na criança qualquer dúvida ou sentimento de injustiça.

A penúltima casa comercial a desaparecer naquele trecho da Rua Coelho Neto. Sobreviveu por duas décadas, o suficiente para marcar presença na vida da cidade. A Casa Carvalho na esquina, depois ela - Guarapeira Estudantina -, o Cine São José, outra garapeira, que não chegou a ser sua concorrente, tendo logo fechado as portas, e a farmácia Botica do Povo no fim da quadra. Do outro lado da rua, a Rádio Difusora, onde, aos domingos pela manhã, havia um programa de auditório com o animador Rodrigues, apresentando cantores, calouros e distribuindo prêmios. Uma espécie de Silvio Santos piauiense. A Merenda, misto de bar e lanchonete, vendia uns pastéis quentinhos, saborosos, e uma abacatada forte, gostosa. A amplificadora ficava à sua porta, no alto dum poste, repercutindo as músicas tocadas na vitrola (havia dezenas delas pela cidade). No Cine São José, o porteiro me deixava entrar de graça, mas não entendia nada do filme, devido à pouca idade. E não me aquietava, saía a todo instante para contar a papai o que via na tela. Em seu lugar surgiria o armazém, também São José.

O prédio era simples, comum, espaçoso, com duas portas de entrada. E o nome garapeira estudantina escrito à tinta na fachada. O balcão em forma de "L". Ao entrar, se via tudo: a prateleira tomando a parede de ponta a ponta, a engenhoca, montada sobre um tripé de ferro fixado ao chão, bem visível para que o freguês visse o caldo descer fresquinho das moendas, que um dia triturou o dedo indicador do proprietário, deixando-lhe a marca eterna.

- Quantos dedos eu tenho nesta mão (a direita)? - perguntava ao filho.

- Quatro e meio.

E ele ria, com aquele riso franco. Seguindo, um armário pequeno, onde se guardavam documentos e o revólver, Smith and Wesson, calibre 32. O depósito de pães, comprado na padaria da Praça do Liceu. Tudo limpo, asseado. Daí o sucesso com a freguesia, vasta, variada. A casa continuava para os fundo, com outros compartimentos, destinados ao armazenamento da cana-de-açúcar. Ao lado, o terreno vazio, usado para a guarda o bagaço e, também, para o plantio de mamoeiro. O frutos eram colhidos de vez, cortados nas extremidades e riscado em vertical para escoar o leite. Assim, amadureciam sem amargume. Amadurecidos, eram expostos, à venda, sobre o balcão. Outra fonte de receita, afora a do vinagre. Este preparado da cana estragada, após um processamento simples, mas demorado, que despendia dias e requeria paciência. 

A cana era entregue na porta, trazida por velhos caminhões. Nem sempre havia fornecimento regular deste produto. Em alguns meses do ano, escasseava, chegando a faltar. Era um tormento, pois, sem ele, não tinha como trabalhar. E, para evitar a a paralisação, papai corria o interior, em longas e exaustivas viagens, a fim de comprar diretamente do produtor, que, nessas circunstâncias, cobrava acima do normal. O custo saía mais caro ainda por causa do frete. Enquanto isso, para não se parar, vendia-se refresco de abacaxi ou de coco. Mesmo assim, a demanda diminuía porque o pessoal preferia mesmo era o caldo de cana. Gelado, natural (sem gelo) ou misturado, ingerido com pão, massa grossa ou fina. Era um lanche barato, nutritivo. Diziam, inclusive, que servia para aumentar o leite materno de quem amamentava, assim como para se certificar da cura da blenorragia, pois, se após um copo de garapa não descesse mais o líquido, era porque se estava definitivamente curado. Se isso tinha base científica ou não, é outro assunto. A crença havia.

O seu dia começava cedo. Abriam-se as portas às seis da manhã, antes já se tendo apanhado os pães na padaria. O empregado chegava às sete, indo buscar o gelo na fábrica da beira do rio de propriedade do Sr. Joaquim Nelson. Trazia duas barras, que eram serradas em pedaços colocados num recipiente que os conservava por todo o expediente, encerrado às nove da noite, quando se lavava a casa. A cana, antes de ser moída, era raspada.

Sábado era o dia das esmolas. E aparecia pedinte de todos os cantos. Formavam até fila que dobrava a esquina da Casa Carvalho. Cada um ganhava uma caneca cheia de garapa e um pão. A maioria já conhecida. Dentre eles, estava sempre o "Doutor", mais débil mental que mendigo. Tinha mania de ler anúncios, o que fazia de maneira engraçada, soletrando pausadamente cada sílaba.

Pedia-se para que lesse, e ele não se fazia de rogado. Olhava os cartazes pregados nas paredes e caprichava: "bri-lhan-ti-na Glos-to-ra, Bi-o-tô-ni-co Fon-tou-ra". Pobre "Doutor", tão manso, tão inofensivo, tão idiota. 

Na verdade, o fim da Garapeira Estudantina começou com a doença de papai. Bastou que este adoecesse para que ela entrasse em decadência. A freguesia foi sumindo aos poucos. E o novo proprietário, ignorando os segredos do negócio, não pôde evitar a sua queda. O fechamento de suas portas foi, sem dúvida, o final de uma época naquele trecho da cidade.



em Imagens da Cidade Verde
Rio de Janeiro: Litteris ed, 2008

27.1.16

A PENITENCIÁRIA, José Ribamar Garcia




Nasci atrás da penitenciária, numa casa de meia-água, com a fachada desbota e avermelhada pela poeira da rua de terra solta. Não tinha luz elétrica, nem água encanada. Mas era de telha, o que representava segurança, porque, na época, a cidade vivia sob o terror dos incêndios. E estes só aconteciam nas casas cobertas por palhas de carnaubeira ou babaçu. Havia dia de ocorrerem de três a quatro incêndios. Fato nunca investigado devidamente pelas autoridades, que acabavam jogando a culpa nos políticos da oposição. Estes replicavam, dizendo que o governo queria livrar a cidade dos pobres, por isso lhes queimava as casas. E aquela fora a melhor que meu pai conseguiu alugar para alojar a família. Recém emigrado do Maranhão, ele ganhava a vida trabalhando exaustivamente, fazendo de tudo na garapeira do amigo conterrâneo. E eu cheguei naquele clima aterrorizante, numa madrugada chuvosa de modo inesperado até, sem parteira por perto. O que obrigou o papai a sair, no temporal, às carreiras, pela cidade que pouco conhecia, à cata de uma. Mas não deu para esperar. Quando ele chegou com a parteira, por sinal semicega, eu já estava entre as pernas de minha mãe, esperneado aos berros. O cordão umbilical foi cortado pelo tato.

A penitenciária me fascinava. Não pela dimensão de seu prédio, ou pela altura de seu muro, coberto por fios elétricos descascados. Conta-se que fugitivos morreram eletrocutados por esses fios. Essa fascinação consistia numa curiosidade de saber o que se passava no interior e como era a vida de sues habitantes e a razão que os levara para ali. Quando indagava às pessoas grandes esse motivo, respondiam-me com evasivas respostas, ou de modo vago, lacônico, talvez por comodidade ou por acreditarem que criança não deveria saber dessas coisas. E me enfatizavam que preso não prestava, era gente ruim, sem alma, capaz de tudo. Isso, com certeza, me foi desenvolvendo um sentimento para com ele de repulsa, desprezo. 

Quando via a turma de presos limpando as ruas, as praças ou descendo escoltados, à Firmino Pires, rumo ao tribunal, sentia algo como se fosse nojo. Realmente, pareciam uns páreas: maltrapilhos, subnutridos. Espantava-me que os meninos de minha rua não tivessem o mesmo sentimento, pois demonstravam admiração e até piedade. Também não me metiam medo. Nem mesmo um de quem diziam que matava crianças para comer os miolos. Dos famosos, sobres os quais corriam estorias de bravura e valentia, como o Catnã ou Zezé Leão, simplesmente, eu não acreditava nas estorias. E os achava iguais, sem valor algum. Nos julgamentos de crimes envolvendo gente importante, que a Rádio Difusora se preocupava em transmitir, sempre me colocava ao lado da acusação. Não me deixava inclinar pelas palavras bonitas da defesa. E me revoltava com a absolvição. No entanto, a curiosidade de saber o cotidiano da cadeia estava comigo.

Gostava de passar pela sua porta de bicicleta, ou nos ônibus que faziam as linhas de Timon e Matadouro, a fim de espiar o seu interior. Mas não via além do portão de ferro dividindo o longo corredor de entrada. À frente, do outro lado da rua, sob enormes árvores, os guardas passavam o dia conversando, enquanto um se escondia dentro da guarita. Viam-se, também  em conversas com os soldados, alguns presos, certamente os de bom comportamento ou financeiramente remediados. Aliás, não se notava preso endinheirado limpando logradouros públicos. Essa discriminação me causou estranheza. E me mostrou o inverso da moeda. A sociedade traça normas de conduta e quem as violar será segregado, isolado; Porém, se o violador for possuidor de bens materiais, a regra é mudada. A própria sociedade se inclina, se corrompe, invertendo seus valores. Percebi cedo na farsa dos julgamentos. A balança da justiça pendendo contra o pobre de dinheiro para vergonha da deusa Nêmesis. 

Ao lado do portão de entrada, espalhados sobre a calçada, os presos expunham, à venda, seus trabalhos de artesanato, feitos de madeira, cerâmica, embira. Bem elaborados, confeccionados. Caminhões de madeira com réplica de várias marcar de carros de verdade. Mas, impulsionado pelo meu sentimento, acima dito, preferia os caminhões de buriti que meu irmão fazia e com os quais brincava, enchendo-os de capim, apanhado no próprio largo da penitenciária para dar de comer aos meus preás-do-rei. Mesmo porque os que meu irmão fazia, além de mais bonitos, não custavam dinheiro.

Nesse largo que se estendia diante do prédio, até circo fora armado, mas depois a prefeitura suspendeu licença para essa finalidade, alegando medida de segurança. Já se falava em segurança... Tolice, aqueles presos subnutridos não tinham força para se evadir. Nunca ouvi falar de fugas, nem de tentativas, pelo menos, em massa. Os que conheci, mais tarde, viviam resignados, conscientes de que estavam pagando o crime cometido. E ainda respeitavam a Justiça, inclusive conhecendo a sua vulnerabilidade.

O sentimento de repulsa, nojo, que eu tinha daqueles infelizes foi, com o decorrer do tempo, me abandonando. Exatamente à proporção que esse mesmo tempo me foi exibindo o lado real, cru, incolor do homens. E constatei que nem sempre o transgressor é o único culpado de seu ato. Uma série de circunstâncias, um conjunto de coisas complexas o faz transgredir. E nem a sabedoria das ciências, ainda, conseguiu transpor esse obstáculo, no sentido de evitar ou compelir o desvio desse comportamento. O homem permanece na sua ilha, fechado, isolado, incógnito dele mesmo, sobretudo.



em Imagens da Cidade Verde
Rio de Janeiro: Litteris ed, 2008

6.3.12

O BAR DO PICOLÉ




Na praça do Liceu, esquina da Rua Simplício Mendes com a Desembargador Freitas, havia o bar onde se fazia o melhor picolé da cidade. Tão natural que vinha o resíduo da própria fruta. Diferente daqueles preparados com água e um pozinho colorido, vendidos nas ruas ou no Lindolfo Monteiro em dia de jogo. O cara gritava picolé de tamarindo e, quando se ia ver, era gelo puro. Da fruta mesmo um sabor distante, pra lá de Timon.

A mulher que atendia ao balcão era pequena e magérrima. Tinha feições de índia e, nos olhos, uma tristeza que causava pena. Não ria, nem falava. Recebia o freguês sem um obrigado. E movia-se devagar como se carregasse um fardo de toneladas.

Por essa época, Milton Rodrigues ainda namorava a tia Aradi - namoro arrastado, sem fim. Ele costumava aparecer lá em casa duas ou três vezes por semana, sempre depois do jantar, para marcar ponto. Os dois colocavam as cadeiras de cipó no corredor que dava para a rua e ficavam sentados, com intervalos de silêncio, como se não tivessem mais nada o que dizer um ao outro. Asseguram que isso é normal em longo relacionamento dessa natureza. Às vezes, ele levava o violão e dedilhava notas desencontradas e trechos de canções românticas, que ela ouvia atenta com aquele olhar de apaixonada, sonhando com o casamento - que viria oito anos depois. Mas sua presença me agradava, especialmente, quando me mandava buscar picolés, que eu trazia numa vasilha de alumínio, com os dedos das mãos enrijecidos. Valia, pois na distribuição minha cota era maior.

Numa dessas noites, tia Aradi comentou que a mulher do bar estava tuberculosa. Conversa que ouvira no trabalho. A partir dali não se compraram mais picolés. Foi o fim das farras que Milton patrocinava, sem exibição. Havia preconceito contra essa doença. Ai de quem a portasse. Estaria condenado à segregação, ao degredo domiciliar. A família isolava seu doente num cômodo de onde jamais sairia. Ali aguardava a morte, às vezes antecipada pela solidão.

O teresinense nunca foi de medo. Criado entre trovões e coriscos, aprendeu cedo a tocar a vida, com coragem e cabeça empinada. Mas, quando se tratava de tísica, ele pensava duas vezes. Até mais. E exagerava nas precauções.

Tio Olinto assimilou esse hábito. Chegado do Maranhão, entrou em pânico ao saber que a casa que alugara havia sido ocupada por um homem devorado pelos bacilos de Koch. Não houve quem o tranquilizasse. Nem o senhorio afirmando que pintara a casa com cal e a desinfetara com creolina. Desfez o contrato e alugou outra na Rua Riachuelo.

Boato espalha-se mais que fogo em palha seca de carnaúba. A história da tuberculose na mulher ocorreu e afugentou os fregueses. Chegou o momento em que não havia mais o bar, nem a mulher, nem os picolés.



José Ribamar Garcia
em Imagens da Cidade Verde
Rio de Janeiro: Litteris ed, 2008

24.1.12

PRAÇA PEDRO II




Praça Pedro II, outrora Aquidabã. Não entendi a mudança do nome, que era mais sonoro, romântico e original para o local. Historicamente, não há como se justificar, pois o Imperador jamais pusera os pés no Piauí, nem mesmo os olhos. Tampouco a sua consorte, a quem deram o nome da capital. Falta de imaginação ou puxa-saquismo. Resquício da bajulação reinante no Império.

Foi ali que vi o maior ajuntamento de gente na cidade. Aconteceu no show com vários cantores famosos do Rio, patrocinado pela Vigorelli. Se tudo do Rio de Janeiro já exercia fascínio, aquele espetáculo com os melhores intérpretes da música popular, como Nélson Gonçalves, Orlando Silva, Ângela Maria e Adelaide Chiozzo, dentre outros - só vistos no cinema - era algo encantador, deslumbrante. Arrebatador de público. Ainda mais gratuitamente. Naquela noite, ninguém permaneceu na porta da rua, fugindo do calor e das muriçocas.

Desde cedo, a praça foi recebendo gente. De todos os quadrantes. O palco armado na sua parte superior. À hora marcada para o início do show, a massa presente. As figueiras lotadas de espectadores que não deixaram espaço, nem permitiam que outros subissem, o que me irritava, porque, não encontrando uma posição que me desse visibilidade, ainda não podia subir numa. A molecada não deixava e até me cuspia. Foi quando, providencialmente, apareceu o Cacique que, já acomodado num galho e vendo meu desespero, me chamou e me ajudou a trepar na que estava, embora sob os protestos dos ocupantes. Esse meu companheiro da Quinta Velha, de índio só possuía o apelido. Tipo magricelo, alto, uma barriga que não tinha mais tamanho, calmo, falava pouco e gozava da fama de valente, mas nunca o vi brigando. Dificilmente tomava partido nas discussões e, quando consultado, opinava com ar professoral, sentindo-se importante. E sua opinião era acatada, valia. Por ser o mais velho do grupo, os novos acreditavam nele, tanto que, havendo jogo fora, era levado para atuar como consultor, protetor. Gostava dessa deferência. Mas, aos poucos, ele foi ficando esquisito e sumindo do nosso meio. Falava menos ainda. Passou a se fechar em si, não saindo de casa. Chegou ao ponto de que nem a cara punha na janela. Diziam que adoecera da cabeça porque se masturbava muito

Da figueira, eu avistava nitidamente os artistas, até os detalhes de seus trajes, apesar do desconforto. Mas não importava. Melhor do que ficar no meio da multidão, fuçando lugar feito tatu e levando empurrões. O inconveniente era não poder me mexer, daí me doíam as costas, porém a beleza do espetáculo compensava o sacrifício, tirando-me o pensamento da dor. E eis Adelaide  Chiozzo, em cena, cantando e tocando acordeão. Babaquice geral. Seu jeitinho manhoso. Cabelos médios e lisos. Conquistou a multidão. Naquele momento, então, ouvi um estalo no galho em que estava montado. Foi tão rápido que não tive tempo de pular. O mesmo despencou trazendo a cambada em cima de mim. Caí zonzo. Formou-se um pequeno tumulto, com gente correndo, pensando que fosse briga. No chão, ainda, fui pisado e acreditei que ia ser massacrado. Dei sorte. Consegui levantar-me, meio aéreo e fui mancando para casa, com alguns arranhões no corpo, sem mais querer saber do show.

Aquele recorde de gente superou de longe o público dos comícios. Até no que compareceu Adhemar de Barros, disputando, pela segunda vez, a Presidência da República, com o Marechal Lott e Jânio Quadros. Adhemar, no seu jeitão de alemão e com sotaque paulista, passou o tempo todo expedindo ofensas pessoais contra Jânio, chamando-o inclusive, de maricas. Nada de coisa séria na sua fala, mas o povo vibrava com os xingamentos. No entanto, Jânio, empunhando a bandeira da UDN, ganhou em disparada. Uma loucura de votos para sete meses depois abortar, sem dor, o cargo, pondo a nação confusa com uma batata quente nas mãos. Aliás, Jânio foi a maior e a pior piada deste País. E piada chula, cheirando a álcool.

Sempre foi a praça favorita para os grandes eventos, dadas a sua amplitude e centralização. Ela era dividida em dois planos. No superior, com iluminação fraca, ficava o coreto, onde a banda da Polícia Militar executava chorosos dobrados, cujo quartel central localizava-se defronte. Era a parte preferida por soldados e empregadas domésticas, que namoravam nos bancos semiescondidos pelos canteiros de plantas.

Só dava curicas naquele pedaço, como diziam as moças de família, referindo-se às empregadas domésticas. Na parte inferior havia os tanques, enfeitados por garças e algas marinhas. E o desfile em roda.

Moças de um lado, andando em círculo, e os rapazes do outro, em sentido contrário. Ou então eles ficavam parados, paquerando as meninas que passavam, geralmente, em dupla, de risinhos, cochichos e lançando olhares convidativos. Para alguns, a parte de cima era melhor, tinha futuro, porque o namoro começava na hora e já avançado - sem inibição e preconceito.



José Ribamar Garcia
em Imagens da Cidade Verde
Rio de Janeiro: Litteris ed, 2008

15.12.11

RUA PAISSANDU, José Ribamar Garcia


Esta rua nasce no Parnaíba, para variar. E acaba na Pedro II. Mas o seu ponto forte, seu pique, o que a tornou famigerada, procurada, cobiçada, se situava nas primeiras quadras e se estendia pelas transversais próximas: A zona do meretrício. O prolongamento dos fins de programa. A continuação das farras iniciadas no Clube dos Diários, no Jockey Club. Ali, a noite era toda sorriso. A ansiedade, a curiosidade da primeira vez do iniciante. A cachaça dos habituados. o lenitivo do tédio dos inconformados. O refúgio dos inibidos, introvertidos. A satisfação das taras, manias, neuroses. A demanda geral do prazer, da variação, do diferente. O descarrego dos espermas retidos de jovens namorados. A eterna dor de cotovelo das mal-amadas. A preocupação das mães. O consumo de antibióticos contra a gonorréia, a sífilis, para gáudio da Botica do Povo, que esvaziava seu estoque e faturava. E o Jaime Gordo, olhando sobre os óculos de aros finos, acertava de cheio no diagnóstico, enquanto o Manoelzinho, semiperneta, com as mãos hábeis, furava bundas com suas agulhas, cuidadosamente desinfetadas. A perdição ou salvação. A ressurreição, afinal.

Os cabarés de fachadas iluminadas. As casas com calçadas altas e as mulheres sentadas à porta. Os becos de casinhas de um só cômodo Os bares, os botecos. Os salões de sinuca e o taco batendo a noite toda. A bola rolava macia sobre o pano verde. A quatro caçapa, a cinco em sinuca e um cara anotando os pontos no quadro-negro dependurado na parede. Vendedores ambulantes com barracas de comida - sarapatel, panelada. Ébrios caindo pelas paredes incomodando o sono dos mendigos. mulheres vagando tentavam salvar a noite. Pois cobra que não anda não engole sapo. Também não leva porrada. Alguns viadinhos saltitavam, solitários, segregados. Macho que se prezasse não transava com pederasta. Nem batia em mulher. E, contrastando com essa decadência humana, estavam o Estrela, o Danúbio com suas mulheres novas, limpas, selecionadas. Algumas de outras capitais. Menina-moça, escondia a idade nas pinturas, disfarçando os comissários de menores, mais preocupados em participar do que em reprimir. Garota de 13 anos fazendo carreira, sem corpo ainda de mulher, mas peitinhos despontados, já com pelos, desinibidas, mas sem jeito de fazer. À meia-luz no salão. A orquestra sobre o estrado num canto. As mesas dispostas em círculo e o espaço vazio no meio para a dança. Bolero, samba-canção, rumba, fox, tango, baião. A variedade para gostos diversos. Só não dançava quem não queria. Muitos aprenderam a dançar naquelas pistas, descontraídos, porque podiam errar os passos que ninguém ia reparar. A cerveja a preço dobrado da praça. Escolhia-se a mulher, com ela se bebia, dançava e depois o amor, sem pressa, no quarto, instalado nos fundos, que mal cabia a cama, a penteadeira, o guarda-roupas de solteiro. E a indefectível bacia com água, sob a cama, para lavar o membro do parceiro após o ato. O preço do amor dependia da mulher, pois, quando ela simpatizava com o sujeito nem cobrava, ou deixava o valor a seu critério. Ainda suplicava que passasse a noite com ela. A maioria era ingênua. Sonhava com o dia em que surgisse alguém para lhe tirar daquela vida. Algumas davam sorte e viravam amantes de velhos endinheirados, que lhes montavam casa, davam-lhe apoio e segurança. Essas mudavam, radicalmente, de comportamento, só devotando a fidelidade ao seu homem. As histórias se pareciam. Origem humilde. Namoro. Defloramento. Expulsão de casa. Ou família numerosa. Miséria. Fome. A fuga para sobreviver na cidade grande. Sem conhecimento e nada sabendo fazer, convergiam para aquela vida, sem alternativa.    

No Estrela, ocorreu a desmoralização do Cecéu, boêmio inveterado, vivendo às expensas do pai e tido como bom de briga, já tendo enfrentado no braço, uma guarnição da Polícia Militar. Nada lhe acontecia, devido ao prestígio político paterno. Boa pinta, cabeleira cheia, com topete caindo sobre a testa. Andava impecavelmente, vestido de linho, todo engomado. Achava-se belo, irresistível e querido pelas mulheres. No entanto, levou uma surra feia de uma rapariga porque cismou de colocar no seu traseiro. A mulher virou bicho. E lhe meteu a tranca da porta nas costas e ainda saiu espinafrando-o pelo salão, dizendo que ela podia ser tudo, menos galinha. Que devia ser respeitada. Foi um vexame. O Cecéu saiu contorcendo-se, envergonhado mais pela rejeição e humilhação pública do que pela paulada. O acontecimento se espalhou. E ele passou a ser chamado de Cecéu Corococó.

Fazia ponto no Danúbio o poeta Valdomiro. Figura magrinha, baixinha, de aparência frágil. Adorava ser chamado de poeta. Fazia versos para as mulheres; mas cada vez que compunha um poema, gozava nas calças, sujando-se todo. Tornou-se conhecido como o poeta do gozo fácil. Parecia não se importar com essa situação. E permanecia o tempo todo sentado a uma mesa, bebericando sua cachaça pura.

Não se falava ainda em tóxico. Nem mesmo no meio da malandragem, que se satisfazia com o álcool ou com o lança-perfume no carnaval. Aliás, no corso, os carros mais animados e bonitos eram os das putas. Fretavam dois caminhões e de divertiam atirando pó de arroz no público. Quando elas passavam, os homens viravam as caras, com receio de serem reconhecidos. Havia até uma senha usada por elas: lá vem o carro das primas. Coisa mais ou menos assim.

Até mesmo as brigas - um tanto frequentes - eram na base do punho, quando muito na faca. Não se usava arma de fogo. Pairava em tudo certo romantismo. Ainda uma pureza e respeito ao humano.


José Ribamar Garcia
em Imagens da Cidade Verde
Rio de Janeiro: Litteris ed, 2008

27.11.11

IMAGENS SOLTAS, José Ribamar Garcia


O pneu saltitando no paralelepípedo. O menino sem camisa, de calção e descalço, empurrava-o com um pedaço de tábua.
     
O céu girando, girando. A bicicleta substitui o pneu que, por sua vez, sucedeu o velocípede. A Gulliver vermelha, cuidada, brilhava com duas flâmulas do Fluminense dependuradas no guidom. Entrava na Rua Firmino Pires, dobrava à esquerda, na Estrela, caía à direita, na Rui Barbosa, depois à esquerda, na Lizandro Nogueira e, finalmente, na Coelho Neto. A estrela, em alto relevo, na fachada da casa do Monsenhor Chaves. O borracheiro que várias vezes remendara a câmara de ar da bicicleta.
     
O céu girando, girando. A ponte do Mafuá. A linha do trem sobre a qual se colocavam cacos de vidro para que o trem os transformasse em pó, a fim de ser utilizado, como cerol, na linha do papagaio. O Augusto Ferro, reduto dos boêmios suburbanos.

O Cemitério São José guardando lembranças, saudades. Dia de Finados, aquela romaria toda. Os vendedores gritando:

- Olha as velas Três Coroas!

- Olha as flores!

O matadouro, onde se adquiriam, à tarde, fígado, língua, coração, miúdos fresquinhos. O boi sendo arrastado por dois ou três homens, a entrar no salão, ensanguentado. O animal urrava, relutava, esperneava, pressentindo o fim. Com sacrifício, ele era amarrado ao mourão. A faca curta, fina e afiada entrava-lhe na nuca. E a queda brusca. Mais outro a adentrar e a cena se repetia.

O Poti Velho escondido, abandonado, sempre preterido, desde os tempos do Conselheiro Saraiva. Ali a gente caçava passarinho e preá. A mania do Milton Rodrigues de comprar canários, fuçando a periferia da cidade na sua motocicleta barulhenta, que o motor custava a pegar, ora pela bateria, ora por defeito mesmo.

A usina elétrica na beira do rio, fornecedora de água e luz, que funcionava na base da lenha. E as caldeiras queimando madeira, trazida em caminhões das matas maranhenses, já bem devastadas.

A Socopo do outro lado do Poti. Estância mineral com o clube social enfiando no mato. A cidade já marchava para aquelas bandas.

O céu girando, girando. A pescaria debaixo da ponte. A brisa soprava e a canoa deslizava, vagarosamente, sobre as águas do Parnaíba, puxando a rede ou o arrastão. o peixe era assado e devorado ali mesmo, na coroa do lado maranhense, enquanto se ouvia o baque das mangas, caindo no mangueiral que se estendia ao longo do rio.


em Imagens da Cidade Verde
Rio de Janeiro: Litteris ed, 2008