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1.1.16

De Uruguaiana à Rio Branco, de Aquidabã à Pedro II: a mudança de nome é também ressignificação das liturgias e ritos das sociabilidades, por Nilsângela Cardoso Lima



As primeiras décadas do século XX são marcadas por sensíveis transformações no espaço urbano brasileiro, através da revitalização das cidades.

No Piauí esse processo se configura pela alegação de novos hábitos e costumes relacionados ao viver em cidade. Particularmente em Teresina a onda progessista se dá por meio da criação e valorização de espaços de convivência e lazer: praças, ou passeios públicos, salas de cinema, bares, teatros, cafés, clubes etc. Ruas cada vez mais limpas e saneadas, iluminação com luz elétrica e telefone, são avanços da mesma época que também chegam. Permaneceriam ainda por muitos anos outros espaços tradicionais de sociabilidade, tendentes a ser menos valorizados, tipo adros e salões das residências da aristocracia.

Bem exemplifica essas mudanças, a reconstrução da praça Uruguaiana, depois Rio Branco, entre os anos 1909 e 1913; reconstrução que lhe confere a condição de passeio público predileto da capital; na década seguinte, esse logradouro se tornaria centro da atividade comercial local. Note-se que a valorização urbana da área dos fundos da velha matriz do Amparo em detrimento da parte da frente – o adro das festas de antes – é emblemática das transformações mentais do tempo.


Igreja de Nossa Senhora do Amparo, vista da Praça da Bandeira
/ fonte: página TERESINA MEU AMOR)

Em especial, a juventude de elite frequentava esse espaço das sete às dez da noite, quando, ouvindo o ‘sinal’ do apito da usina elétrica se recolhia aos lares. A Praça Rio Branco, ajardinada e com coreto, atrai a elite, mas também setores populares marginalizados; a segmentação é bem evidente, conforme o uso das áreas mais ao norte ou mais sul, por uns e outros.


Praça Rio Branco / fonte: página TERESINA MEU AMOR)

Por estar localizada num ponto central da cidade e próximo a outros pontos de aglomeração e lazer, como por exemplo, a própria Igreja do Amparo, o Café Avenida e o Bar Carvalho, a Rio Branco caracterizava-se também como sala de espera de encontros previamente marcados, antes de dirigirem-se as pessoas aos referidos cinemas, teatros, cafés, bares e a outros locais de entretenimento da cidade.

Os anos 1930 chegam e com eles a perda de hegemonia da Rio Branco como lugar privilegiado do lazer dos teresinenses, isto em função da reforma da Praça Pedro II, antes chamada Aquidabã, em 1936. Com a reconstrução da Pedro II, e também a construção de prédios de arquitetura moderna ao redor dela, como o Cine Rex e o Cinema São Luis, além da revalorização do tradicional Teatro 4 de Setembro, torna-se ainda mais aprazível o clima da P2 para o “footing” da sociedade teresinense.

Do mesmo modo que a Praça Rio Branco oferecia um espaço propício a “namoricos” e ao desfile das moças com as últimas novidades da moda do Rio de Janeiro e dos cinemas, a Praça Pedro II se revela como o mais novo espaço para o divertimento da sociedade. O clima atrativo da praça, com seus jardins floridos e carnaubal decorativo, era ponto de encontro e desencontro de rapazes e moças, senhoras e senhores, constituindo-se na “única praça do mundo na qual jovens da época desfilavam em redor de um círculo, para deleite de seus admiradores”.


Praça Pedro II
/ fonte: página TERESINA MEU AMOR

As noite na Praça Pedro II decantavam uma iluminação pública, com animação de bandas da polícia e do exército, nas quintas-feiras e aos domingos, executando peças musicais. Nessa praça também eram promovidas as comemorações cívicas da cidade, além de comícios e outro agitos; palco, também, onde, em determinada época, certa intelectualidade trocava ideias e sabedorias.

Deve-se ressalta que a própria estrutura física original da praça resultava em contribuir, a exemplo da Rio Branco, para uma segregação social, quanto à sua utilização. Separada transversalmente por uma “rua”, tinha dois ambientes: a “praça de baixo”, local privilegiado para as chamadas ‘moças da sociedade’, enquanto que a “praça de cima”, também chamada de “praça das curicas”, era frequentada, em geral, por empregadas domésticas e pessoas do mesmo nível social. Era comum ouvir-se falar que na “praça de cima” as classe populares se divertiam, sendo ponto onde as moças mais pobres e soldados se encontravam.

O passei público de Teresina, também, pode ser visto como um refúgio para o público feminino que se encontrava no limite do espaço privado. O traçado requintado e atrativo das praças proporcionava um encontro de sociabilidades e de conveniências sociais. Mas é inafastável que o passeio público foi marcado por esse “apartheid” social invisível, mas muito presente dentro dos espaços de lazer e convivialidade da capital.

De outra parte, as festas e bailes eram atrativos que faziam parte do lazer teresinense, sendo realizados por ocasiões de aniversários, casamentos, viagens, vitórias políticas, dentre outras ocasiões que promovessem o encontro da “fina flor da sociedade” local. Tais festas possibilitavam que rapazes e moças demonstrassem os requintes da sua educação, bem como, consistiam em lugares elegantes, entre outras coisas, dadas as vestimentas da pessoas que os frequentavam. Os bailes eram festas tradicionais do lazer na cidade feitos em casas particulares, em decorrência da falta de locais apropriados para o divertimento na cidade.

A partir de 1920, eventos do tipo passaram a ser realizados em casa particulares e vão sendo transferidos para os clubes e salões que surgem na cidade. Pode-se destacar o Clube dos Diários, fundado em 1922, que passa a ser o local de encontro, lazer e diversão da elite teresinense, constituindo-se em local mais apropriado para os grandes bailes, também para as magnas sessões solenes da cidade, conferências e congêneres, além de récitas, concertos etc.

Voltando ao teatro e sobretudo ao cinema, como se viu, desde as primeiras décadas do século XX estão eles incorporando aos ritmos da cidade, sendo o Royal e Olímpia destacados cinemas da cidade, - ainda antes da idas e vindas da P2 e da abertura do moderno Cine Rex, inaugurado em 1939. Ambos apresentavam filmes mudos, exibidos de forma seriada. Devido a isto, as casas de espetáculo conseguiam manter uma clientela animada e constante, uma vez que as pessoas não queriam perder nenhum capítulo do filme. Entretanto, o cinema falado em Teresina é inaugurado em 12 de dezembro de 1933, com a exibição do filme americano “Doce como Mel”, no teatro 4 de Setembro. Este cinema apresentaria posteriormente filmes americanos e filmes de caubói. A chegada do cinema falado provocou mudanças no comportamento da sociedade, na medida em que as casas de cinema, até então existentes, começam a perder público para o 4 de Setembro, pois a elite e as pessoas de maiores recursos passam a assistir filmes ali.

Ressalte-se que, embora o cinema falado constituísse num dos importantes focos de entretenimento da cidade, não houve, de imediato, uma preocupação de se construir um lugar um lugar apropriado para a exibição de filmes. Os locais onde funcionavam os primeiros cinemas eram geralmente casas particulares e adaptadas. Nesse sentido, a inauguração do Cine Rex, casa de espetáculo própria e literalmente cinematográfica, dá orgulho aos teresinenses, sendo considerado “o mais bonito e moderno” que possuía a cidade.


Praça Pedro II, ao fundo Teatro 4 de Setembro (à esquerda) e Cine Rex (à direita)
/ fonte: página TERESINA MEU AMOR

Todavia, desde sua chegada, o escurinho do cinema foi alvo de reclamações de alguns setores da sociedade teresinense, principalmente daqueles ligados à igreja católica, por ser considerado um lugar de perdição para as moças de família. Logo, o ambiente do cinema propiciava a intensificação de flertes entre rapazes e moças. Do mesmo modo que o cinema, através de suas histórias romanescas, influenciava o imaginário do público feminino referindo-se aos relacionamentos amorosos.

Nesse contexto, a febre avassaladora do cinema, proporcionada pelo poderio dos Estados Unidos, faz com que a representação dramática teatral perca lugar para tal, não só pela concorrência, mas por falta também de quem a levasse adiante.

Nesse sentido, nos anos trinta do século XX, a arte cênica perde ainda mais espaço no lazer cultural de Teresina, quando o T4S é arrendado aos irmãos Ferreira, Alfredo e Miguel, para, como referido acima, a exploração do cinema na cidade. Tal medida criou um desestímulo maior aos amadores que demoravam a montar algum espetáculo. Além do que, o teatro em Teresina caracterizava-se como uma forma de lazer cara, dado o elevado preço dos ingressos e pela exigência do toalete. O T4S, única casa teatral da cidade, não permitia, assim, uma maior participação popular.

Uma dimensão interessante do lazer em Teresina ligado à revalorização e/ou criação desses novos espaços de sociabilidades, é o carnaval, a que se dá, então, uma nova roupagem e novas linguagens. As mudanças se deram, inclusive, na sua forma de apresentação, pois perde alguns elementos considerados ‘levianos’ para a participação do público feminino e católico, sobretudo na percepção da igreja, para quem o carnaval era “um atentado à moral e aos bons costumes, um perigo para as famílias cristãs e mesmo um causador de muitas ruínas”. Mas o carnaval se imporá desde então, ganhando a crescente participação da elite que, organizada em bailes, corsos e carros ornamentados, desfilava pela Praça Rio Branco, depois pela PedroII, e em tempo recentes, na Avenida Frei Serafim e, atualmente, com bastantes diferenciações, na Marechal Castelo Branco.

Durante a década de 1920, reitere-se, um dos elementos de muita valorização dos corsos foi o automóvel, então incorporado ao cenário urbano. Nas manifestações carnavalescas de rua participavam todas as camadas sociais que queriam se divertir. Todavia, sobreviviam as festas patrocinadas pela elite, geralmente feitas em clubes fechados ou em residências familiares, configurando-se num carnaval elegante e de acesso limitado. Eram bailes à fantasia ou máscaras, onde as pessoas se divertiam ao “som de orquestras que tocavam marchas e tangos”. Embora consideradas uma festa profana por excelência, os bailes carnavalescos, à medida que iam tomando um caráter ‘civilizado’ e familiar, facilitariam a presença das mulheres.

Uma pergunta se impõe: e o povo pobre da cidade, as classes populares como se divertiam? Embora essas formas de lazer em Teresina implicassem, em geral, no entretenimento da elite, as pessoas menos favorecidas, quando não participavam perifericamente dele, forjavam outras formas de lazer. Vale ressaltar que todas as camadas sociais foram, senão inseridas, influenciadas por esses novos símbolos do progresso e da civilização que as cidades ditas modernas ditavam.



Nilsângela Cardoso Lima
via Teresina 150 anos – 1852/2002 / Fonseca Neto (coord.)
Teresina: Gráfica e Editora Júnior, 2002