Mostrando postagens com marcador patrícia mellodi. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador patrícia mellodi. Mostrar todas as postagens

20.3.20

Nós & Elis: A noite de Teresina no bar da esperança e da cultura, por Antonio César da Silva Pinheiro


RESUMO: O presente trabalho tem o objetivo de apresentar Teresina, a capital do Piauí, observando a leitura do livro No Nós & Elis a gente era feliz – e sabia. Livro que é um coletivo de autores, onde personagens do mundo cultural piauiense e nacional relembram bons e importantes momentos vividos num bar, contribuindo para a memória histórica de nosso povo. Palavras-chave: Teresina, bar, cultura, Nós & Elis, memória.

ABSTRACT: This paper aims to present Teresina, the capital of Piaui, noting the reading of the book We The People & The Elis was happy - and I knew. Book, which is a collective of authors, characters in the world where cultural and national Piauí recall good and bad times, contributing to the historical memory of our people. Words-Key: Teresina, bar, culture, Nós & Elis, memory.

Introdução

Em 2010, o artista plástico, pesquisador e blogueiro Joca Oeiras, paulistano, mas residente em Oeiras, organizou o livro No Nós & Elis a gente era feliz – e sabia, com textos e crônicas escritas por personagens bem conhecidos da cultura e política piauiense. Esses autores relembram momentos entre os anos 1984 e 1994, tempo em que funcionou, nas proximidades da Universidade Federal do Piauí, o Bar Nós & Elis, reduto de estudantes, amantes da cultura ou a gente que procurava na noite de Teresina um lugar para seus drinques noturnos.

Idealizado pelo ex-deputado Elias Prado Jr., parnaibano, falecido durante exercício do mandato, em 2002, prestes a fazer 50 anos, o bar foi inaugurado em 1984, na efervescência da discussão sobre o fim da ditadura militar e campanha pelas Diretas - Já. Elias, fervoroso militante do movimento estudantil universitário em Brasília, retornava à sua terra cheio de sonhos e idéias, uma delas sendo abrir um espaço cultural pra confraternização entre amigos e proporcionar algo diferente para a noite teresinense, na época muito carente de opções. O bar seria fundamental para o início das carreiras de vários artistas piauienses, entre eles João Cláudio Moreno, Roraima, Geraldo Brito, Edvaldo Nascimento, Patrícia Mellodi. Nas noites culturais, encontravam-se também jovens que discutiam os prováveis rumos políticos do país, entre eles o próprio Elias Prado Jr., Antonio José Medeiros, George Mendes e Wellington Dias, todos eles escrevendo suas memórias do bar neste livro.

Lendo essas memórias, observamos a transição que estava acontecendo no Brasil, e o Piauí contribuindo com a análise desse momento. Como diz o cineasta Eduardo Valente ao se referir ao filme Bar Esperança, o último que fecha, de Hugo Carvana, de 1983:

“Diante do desconhecido futuro, há apenas a certeza de que o tempo não está parando e que os melhores anos de sua juventude vão ficando para trás. É entre a melancolia dessa sensação e a euforia de um país que escapa das garras do regime militar que Bar Esperança se localiza, fazendo um retrato com a profundidade e a exatidão de poucos outros sobre uma época cheia de sentimentos contraditórios.”

O bar que veremos nesse livro analisado, é o bar onde se encontram os esperançosos e os melancólicos, discutindo paixões políticas e carnais, curtindo o som de artistas despontando e mudando o cenário da cidade.

A esperança equilibrista

O ano de 1984 marcou, na história brasileira, o momento onde o povo, cansado de uma ditadura que completava 20 anos, tomou as ruas do país pedindo o direito de votar para presidente. Teresina já manifestara sua vontade, numa manifestação em frente ao Palácio do Karnak, no dia 26 de junho de 1983, uma das primeiras manifestações do movimento.

“Naquele mesmo ano, em Teresina, políticos da esquerda aberta e clandestina, intelectuais de espírito libertário, a boemia culta, artistas, sindicalistas, jornalistas, professores e estudantes universitários corriam na contramão do regime moribundo, sendo subitamente presenteados com um lugar que lhes possibilitava a comunhão dos sonhos de independência, cultura irrestrita, vida plena e alegria: o Nós & Elis” (pág. 157)

Elias Prado Jr., que voltava ao Piauí depois de anos estudando em Brasília, abre esse bar, um ambiente multicultural, enfim um lugar onde se encontrar, beber, curtir, discutir. Num espaço pequeno, próximo à UFPI, nascia o Nós & Elis, nome dado em homenagem a Elis Regina, intérprete adorada pelo proprietário do bar, mas que também fazia referência a eles, eles os artistas que Elias desejava ver ali tendo suas carreiras lançadas. Música, teatro e poesia dividiam o palco, pequeno como pequeno era o bar. Embora pequeno, se comparado com os grandes espaços que temos hoje na capital, o bar tinha banheiro feminino e masculino separados, um ineditismo para a Teresina da época. Também inédito era o pagamento de cachê aos músicos, numa tentativa de dar condições aos artistas de seguirem suas carreiras e de criar uma cultura que a cidade não tinha.

O Nós & Elis transformou, de forma radical, a cultura teresinense no que diz respeito à música. Porque, até então, não havia a tradição da música ao vivo. O Elias, colocando, pela primeira vez na cidade, melhor ainda, pagando cachê, começa no Nós & Elis a profissionalização de músicos com trabalhos autorais e/ou intérpretes de um repertório de alta qualidade musical”. (pág. 22)

Elias Prado Jr. não era uma figura das mais fáceis. Gritava com quem quisesse “bagunçar” no seu bar. Numa briga com um cliente por causa de suas convicções políticas, resolveu fechar o bar. Elias era militante (depois deputado estadual) do PDT, grande admirador de Leonel Brizola e fazia política o tempo todo, conversando de mesa em mesa, discutindo e polemizando e não aceitaria alguém xingar seu adorado líder, em plena campanha presidencial de 1989. Discussão sim, mas com elegância. Jornais e artistas pediam a reabertura do espaço cultural, mas, homem de temperamento forte, não aceitava voltar atrás à palavra dada. Resolveu passar o bar para outras mãos, das irmãs Fonteles (Rita, Nazaré e Zezé), também de Parnaíba, estas permanecendo até 1991. Essa fase do bar também foi de enorme sucesso, permanecendo o objetivo para o qual foi criado. Com as irmãs Fonteles, o bar ganhou um produtor artístico, Moisés Chaves que cita o Nós & Elis como “um lugar pra ser lembrado, como coisas que havia e não existem mais, como foi o Beco do Prazer, a Feirinha da Praça Saraiva, o Vôlei Bar, o “quebra-bunda” do Teatro 4 de Setembro...”.

Por fim, em 1992, ganha nova administração, que não é mencionada no livro, talvez por lembrar a triste decadência que tomou lugar da fase áurea. O Nós & Elis não resistiu e acabou de forma melancólica, atraindo uma multidão de jovens que só queria saber do axé baiano no volume máximo. Quando fechou as portas, Teresina estava sendo dominada por uma onda barulhenta de músicas nacionais enlatadas. O lugar tanto fazia para os novos frequentadores. O que tinha sido bom acabou-se sem nenhuma despedida.

Subo nesse palco...

Uma das funções do historiador, segundo Peter Burke é “ser um ‘lembrador’, um guardião da Memória dos acontecimentos públicos, postos por escrito em benefício dos seus atores, para lhes dar fama, e também para benefício da posteridade que poderá, assim, aprender com o seu exemplo”.
Lembrar aqueles momentos no Nós & Elis é, para muitos, lembrar momentos decisivos de sua vida, apresentando pela primeira vez para um público suas criações. E qual a importância disso para a história da cidade? Ora, estamos nos referindo à sua história cultural, e sua conexão com os fatos históricos que aconteciam naquele período. Para a capital corriam todos os aspirantes a uma carreira, onde lá já se encontravam muitos. A juventude universitária, composta por estudantes de diversas cidades do interior do Piauí e de sua capital compunham suas canções, escreviam suas poesias, criavam sua peças. O palco do bar foi o lugar onde puderam expor suas obras, como diz o humorista João Cláudio Moreno:

“Pois é, por aqui em Teresina, houve um lugar assim, onde vivi horas memoráveis de minha vida e onde fiz meu primeiro show, em dezembro de 1989” (pág. 68)

João Cláudio Moreno viveu noites memoráveis, como diz, e discutiu política, militante comunista que já era na época e fez suas apresentações e viu muitos amigos se apresentarem, num clima festivo, onde não raras vezes se juntavam em grandes jams. Alguns frequentadores criavam coragem e pediam o palco para se apresentarem, dando as famosas canjas. As jams são as reuniões de vários artistas num mesmo palco, homenageando alguém com uma canção, e as canjas, amadores que resolveram subir ao palco, em boa parte das vezes, incentivados pelos amigos.

“Lembro do dia em que saí com alguns amigos e fomos até lá tomar uma cerveja e ouvir boa música. (...) Escolada e conhecida dos karaoquês do Jockey, fui convidada a dar uma canja. – Vai lá, Patrícia! Vai lá! Disse a mesa em coro. E eu fui. Um tanto tímida e me sentindo deslocada, pois meu mundo não era o artístico, era o das famílias ‘caretas’ e tradicionais de Teresina frequentadoras da Igreja de Fátima, do Padre Tony. Mas aquele lugar era diferente do resto, transpirava um universo distante que eu mal podia imaginar que seria o meu pra sempre.” (pág. 121)

Num lugar onde toda essa gente descolada se encontrava, o ambiente era muito liberal e democrático. O som rolava mesmo quando não tinha artista se apresentando, principalmente a MPB, e a MPB que tratava de temas políticos, a música de protesto de Chico Buarque, João Bosco, Gonzaguinha, Elis Regina. Na Teresina, mesmo contemporânea, não chegavam discos com muita facilidade, então lá os frequentadores também discutiam sobre as novidades do mundo musical e trocavam suas fitas, discos de vinil, enfim.

A poesia também tinha seu espaço, e era muito respeitada, inclusive tendo um dia, a Quarta Poética, reservado para declamações, às vezes tímidas, às vezes ousadas. Elias Prado Jr., inclusive, chegava a colocar pra fora gente que não respeitava os poetas. O artista foi muito respeitado naquele bar.

O bar é o lugar onde se mantém o contato social ou se afoga num copo de bebida, mas o bar em que o principal lugar é o palco, e um palco onde se apresentaram alguns dos principais nomes de nossa cultura piauiense é um bar diferenciado. O país mudava, o rock nacional explodia. Nesse ambiente, nos conta Edvaldo Nascimento:

“(...) o clima era de abertura política; a volta dos exilados, o fim a da censura e começando o rock’n roll dos anos oitenta com Barão Vermelho, Legião Urbana, Paralamas do Sucesso, Lulu Santos e por aí vai... Nessa praia foi que eu construí um repertório específico para aquele espaço, no meio dos RPMs da vida. Eu colocava as minhas canções que, às vezes, eram confundidas com as outras bandas nacionais que faziam sucesso nas FMs. E com isso, agradava bastante!!!” (pág. 37)

Amanhã vai ser outro dia

O clima de abertura política e a expectativa que tomava de conta de corações e mentes de uma geração encontrou em Teresina um ambiente favorável. No dia 26 de junho de 1983, em frente ao Palácio do Karnak, sede do governo estadual ocorreu grande manifestação pelas Diretas-Já. Em Teresina, os grupos de estudantes, professores, políticos de esquerda e sindicalistas organizavam-se tanto pela campanha, como se organizavam para disputarem eleições, agora que os partidos poderiam ser formados, deixando para trás o bipartidarismo Arena/MDB. Em 1982, o PT já disputara as eleições para o governo do Estado, obtendo pequeno desempenho.

Havia, então, uma emergência em discutir o próximo passo, agora que poderiam levantar temas proibidos por duas décadas e debatidos em círculos clandestinos. Sindicatos, associações, centros acadêmicos e bancos de praça. Todo lugar poderia ser utilizado para o debate das idéias. E o debate era acirrado, pois várias denominações partidárias surgiram ou saíram da clandestinidade. Seus defensores, portanto, ávidos pelo debate, desejavam conseguir mais apoiadores de suas bandeiras, formar grupos cada vez maiores e com condições de chegar ao poder e implantar seus projetos.

No Nós & Elis, bar de propriedade de um adepto do confronto ideológico, militante do PDT, encontrava-se todo esse grupo de militantes e simpatizantes de partidos e movimentos sociais. Em alguns momentos, o bar era uma extensão dos embates ideológicos das salas de aula da UFPI. Discussões políticas eram travadas entre membros do PT, PCdoB e PDT, entre outros, conforme relembra Wellington Dias:

“Um bar. Uma casa de shows. Um refúgio para a juventude de então que fazia da noite diária da capital um brinde á libertação que se prenunciava sem qualquer sinal de dúvida. Felizmente, consta nos autos de minha militância sindical, universitária e partidária um sem-número de noitadas ali vividas, bebidas, discutidas e amadas. (...) A política estava no grito de todas as tribos que ali se incorporavam, na dança de um fogo cheio de aspirações. As faíscas eram comumente desprendidas do próprio cacique do Nós & Elis, o Elias Prado Jr. Polêmico defensor da abertura, o dono do bar alimentava constantes discussões entre os militantes do PCdoB e do jovem PT daquelas noitadas. Os engalfinhamentos envolviam calorosas discordâncias entre camaradas e companheiros que, nos dias de hoje, são convergentes em sua incessante manutenção da democracia que, enfim, nos acudiu.” (pág. 157, 160). 

Assim era o Nós & Elis. Arte e política convivendo entre boas doses e camaradagem.

Conclusão

A história de um bar entrecruzada com a história de uma cidade. Representando uma época e guardando na memória momentos festivos ou dolorosos, cheios de esperança ou vendo depois, ao longe no tempo, uma certa dose de desilusão, pelos planos elaborados e não cumpridos. Refeitos. Mas, ficou na memória de muitos que hoje são a elite cultural e política de um Estado. Bar pode não ter alma, mas tem aura. O que soprou naqueles tempos, naquele espaço, contribuiu para a formação de nosso Estado, culturalmente e politicamente.

REFERÊNCIAS

BURKE, Peter. A História como Memória Social In: O mundo como teatro – Estudos de antropologia histórica. Lisboa. Difel. 1992;
OEIRAS, Joca (org.). No Nós & Elis a gente era feliz – e sabia. Teresina: Gráfica Halley, 2010;
OLIVEIRA, Dante de, LEONELLI, Domingos. Diretas Já! 15 meses que abalaram a ditadura. São Paulo: Record, 2004;
Site Bússola Escolar. Diretas – Já. Acessado em 05/01/2012 Disponível em <http://www.bussolaescolar.com.br/historia_do_brasil/diretas_ja.htm >
Site Fundação Nogueira Tapety. Acessado em 05/01/2012 Disponível em 
<http://www.fnt.org.br/noseelis.php >
Site Programadora Brasil. Bar Esperança, o último que fecha. Acessado em 05/01/2012. Disponível em < http://www.programadorabrasil.org.br/programa/156/ >
Publicado em OVERMUNDO

7.4.14

MÁGICO "NÓS & ELIS”


Patrícia Mellodi e Moisés Chaves


O Passado vira e mexe, volta! As nossas histórias são mitificadas pelo tempo e pelo saudosismo. É assim que me sinto falando sobre minhas experiências no “Nós e Elis”, remexendo num baú de lembranças que à alma me são muito caras.

Tive a oportunidade de cantar profissionalmente a primeira vez ali, naquela esquina mágica. Eu era apenas uma menina de 16 anos que mentia dizendo que tinha dezessete, pois achava que pareceria mais madura.

Lembro do dia em que saí com alguns amigos e fomos até lá tomar uma cerveja e ouvir boa música. (Nesse tempo menor podia beber e namorar pessoa maior de idade que não era crime!) Escolada e conhecida nos karaoquês do Jockey fui convidada a dar uma canja. – Vai lá Patrícia, vai lá! Disse a mesa em coro. E eu fui. Um tanto tímida e me sentindo deslocada, pois meu mundo não era o artístico, era o das famílias "caretas" e tradicionais de Teresina frequentadoras da Igreja de Fátima do Padre Tony. Mas aquele lugar era diferente do resto, transpirava um universo distante que eu mal podia imaginar que seria o meu pra sempre.

Quando desci do Palco, um rapaz cabeludo, jeito exagerado, diria até exótico pros padrões da época, me abordou: - Você é uma estrela! Vamos fazer um show? Era o Moisés Chaves que estava fazendo a programação musical do Bar nos tempos da Família Fonteles. "Eu confesso tive medo, quase disse não!"- Que gente mais estranha! Mas, fui tocada, convencida pela vaidade comum aos artistas diante de tantos elogios e aceitei fazer meu primeiro Show, "Presença".

Pela primeira vez tive direito a direção, cenário, figurino e até assessoria de imprensa, tudo feito pelo Moisés, o meu descobridor de Talentos. Na banda Geraldo Brito na guitarra (meu grande amigo e mentor musical até hoje), Bebeto na bateria e um baixista muito figura que o tempo corroeu o nome da minha memória. A Alda Caddah, da AldaTur, ex-diretora do Teatro 4 de setembro, sensível às artes, acreditou nas palavras do Moisés a meu respeito e nos deu o primeiro patrocínio.

E assim aconteceu o show no Nós e Elis, lotado, com direito a vários artistas na platéia, notas de jornal. Daquele dia em diante eu me tornaria uma artista e aquelas pessoas estranhas, meus amigos e colegas de profissão.

E, como eu falei no início, aquele lugar era mesmo mágico. Nunca contei isso pra ninguém, mas vou escrever agora. Eu tive naquela noite uma experiência mística. No meio de uma música, eu me senti saindo do corpo. Ouvia a minha voz longe, uma sensação de silêncio, como se tivesse entrado num vácuo entre a música e eu mesma. Foi definitivo pra mim, um sinal. Aquilo parecia me dizer que nunca mais eu sairia desse espaço, desse universo paralelo, desse mundo.

Foi ali no Nós e Elis e em mais lugar nenhum.



Patrícia Mellodi
em "No Nós & Elis: A Gente Era Feliz – e sabia"
Teresina: Gráfica Halley, 2010
Organizado por Joca Oeiras