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29.1.16

GARAPEIRA ESTUDANTINA, José Ribamar Garcia


                                                                     "Filomena cadê o meu / Filomena cadê o meu
                                                                     O meu beijo gostoso / Que você prometeu."


A letra dessa canção, tocada na amplificadora instalada em frente à Merenda, tinha esse refrão, que papai acompanhava num assovio quase inaudível. E, quando não havia freguês, ele ficava na porta da garapeira, com a mão esquerda apoiada no portal e o corpo um pouco inclinado, relaxado, apreciando o movimento da rua, que chamava de cinema. Dali observava também o filho, que se distraía no velocípede, circulando o quarteirão. Este velocípede fora um presente ao menino por ter tomado uma série de injeções sem fazer escândalo. Palavra sua era honrada, custasse o que custasse.

- Macho, mesmo, o meu filho!

A sabedoria: louvar as boas ações e rebater as más no momento exato, de forma que não ficasse na criança qualquer dúvida ou sentimento de injustiça.

A penúltima casa comercial a desaparecer naquele trecho da Rua Coelho Neto. Sobreviveu por duas décadas, o suficiente para marcar presença na vida da cidade. A Casa Carvalho na esquina, depois ela - Guarapeira Estudantina -, o Cine São José, outra garapeira, que não chegou a ser sua concorrente, tendo logo fechado as portas, e a farmácia Botica do Povo no fim da quadra. Do outro lado da rua, a Rádio Difusora, onde, aos domingos pela manhã, havia um programa de auditório com o animador Rodrigues, apresentando cantores, calouros e distribuindo prêmios. Uma espécie de Silvio Santos piauiense. A Merenda, misto de bar e lanchonete, vendia uns pastéis quentinhos, saborosos, e uma abacatada forte, gostosa. A amplificadora ficava à sua porta, no alto dum poste, repercutindo as músicas tocadas na vitrola (havia dezenas delas pela cidade). No Cine São José, o porteiro me deixava entrar de graça, mas não entendia nada do filme, devido à pouca idade. E não me aquietava, saía a todo instante para contar a papai o que via na tela. Em seu lugar surgiria o armazém, também São José.

O prédio era simples, comum, espaçoso, com duas portas de entrada. E o nome garapeira estudantina escrito à tinta na fachada. O balcão em forma de "L". Ao entrar, se via tudo: a prateleira tomando a parede de ponta a ponta, a engenhoca, montada sobre um tripé de ferro fixado ao chão, bem visível para que o freguês visse o caldo descer fresquinho das moendas, que um dia triturou o dedo indicador do proprietário, deixando-lhe a marca eterna.

- Quantos dedos eu tenho nesta mão (a direita)? - perguntava ao filho.

- Quatro e meio.

E ele ria, com aquele riso franco. Seguindo, um armário pequeno, onde se guardavam documentos e o revólver, Smith and Wesson, calibre 32. O depósito de pães, comprado na padaria da Praça do Liceu. Tudo limpo, asseado. Daí o sucesso com a freguesia, vasta, variada. A casa continuava para os fundo, com outros compartimentos, destinados ao armazenamento da cana-de-açúcar. Ao lado, o terreno vazio, usado para a guarda o bagaço e, também, para o plantio de mamoeiro. O frutos eram colhidos de vez, cortados nas extremidades e riscado em vertical para escoar o leite. Assim, amadureciam sem amargume. Amadurecidos, eram expostos, à venda, sobre o balcão. Outra fonte de receita, afora a do vinagre. Este preparado da cana estragada, após um processamento simples, mas demorado, que despendia dias e requeria paciência. 

A cana era entregue na porta, trazida por velhos caminhões. Nem sempre havia fornecimento regular deste produto. Em alguns meses do ano, escasseava, chegando a faltar. Era um tormento, pois, sem ele, não tinha como trabalhar. E, para evitar a a paralisação, papai corria o interior, em longas e exaustivas viagens, a fim de comprar diretamente do produtor, que, nessas circunstâncias, cobrava acima do normal. O custo saía mais caro ainda por causa do frete. Enquanto isso, para não se parar, vendia-se refresco de abacaxi ou de coco. Mesmo assim, a demanda diminuía porque o pessoal preferia mesmo era o caldo de cana. Gelado, natural (sem gelo) ou misturado, ingerido com pão, massa grossa ou fina. Era um lanche barato, nutritivo. Diziam, inclusive, que servia para aumentar o leite materno de quem amamentava, assim como para se certificar da cura da blenorragia, pois, se após um copo de garapa não descesse mais o líquido, era porque se estava definitivamente curado. Se isso tinha base científica ou não, é outro assunto. A crença havia.

O seu dia começava cedo. Abriam-se as portas às seis da manhã, antes já se tendo apanhado os pães na padaria. O empregado chegava às sete, indo buscar o gelo na fábrica da beira do rio de propriedade do Sr. Joaquim Nelson. Trazia duas barras, que eram serradas em pedaços colocados num recipiente que os conservava por todo o expediente, encerrado às nove da noite, quando se lavava a casa. A cana, antes de ser moída, era raspada.

Sábado era o dia das esmolas. E aparecia pedinte de todos os cantos. Formavam até fila que dobrava a esquina da Casa Carvalho. Cada um ganhava uma caneca cheia de garapa e um pão. A maioria já conhecida. Dentre eles, estava sempre o "Doutor", mais débil mental que mendigo. Tinha mania de ler anúncios, o que fazia de maneira engraçada, soletrando pausadamente cada sílaba.

Pedia-se para que lesse, e ele não se fazia de rogado. Olhava os cartazes pregados nas paredes e caprichava: "bri-lhan-ti-na Glos-to-ra, Bi-o-tô-ni-co Fon-tou-ra". Pobre "Doutor", tão manso, tão inofensivo, tão idiota. 

Na verdade, o fim da Garapeira Estudantina começou com a doença de papai. Bastou que este adoecesse para que ela entrasse em decadência. A freguesia foi sumindo aos poucos. E o novo proprietário, ignorando os segredos do negócio, não pôde evitar a sua queda. O fechamento de suas portas foi, sem dúvida, o final de uma época naquele trecho da cidade.



em Imagens da Cidade Verde
Rio de Janeiro: Litteris ed, 2008

28.1.16

UM ESTRANHO EM TERESINA, Cunha e Silva Filho




Estive há pouco em Teresina e desta feita me achei um peixe realmente fora d’água, um estranho no ninho. Não que o desejasse, mas a culpa, leitor, é unicamente minha. Quem manda não a ter frequentado mais amiúde.

Da janela do hotel, lá fora, dava uma espiada para o que poderia ver que valesse a minha atenção ou curiosidade. Pois não é que procurei e achei. Era a visão de uma mulher, em plena tarde de um sol escaldante, caminhando, caminhando, caminhando, debaixo de uma sombrinha. Claro que não foi só aquela mulher que portava uma sombrinha para abrigar-se do sol abrasante. Não me lembro de outras vezes que andei por Teresina de reparar nesse costume local, aliás, bem justo e necessário, de usar uma sombrinha contra o rigor solar. Esse hábito me parece ser apenas feminino, já que não vira nenhum homem utilizando um guarda-sol.

Aqui no Rio de Janeiro, usar uma sombrinha ou guarda-chuva, em pleno calorão, não é comum como na “Cidade Verde”. Lá é hábito; aqui, é exceção, chega mesmo a ser constrangimento para quem dele faz uso com receio de se ver vítima de um gaiato qualquer perguntar-nos se está por acaso chovendo. O carioca sofre, mas não abre o guarda-sol. “Os cariocas somos pouco dados” aos guarda-chuvas, ou chapéu de sol ou muito menos a uma sombrinha, para nos intrometermos, sem sermos chamados, no labiríntico intertexto machadiano.

Das últimas vezes que fui a Teresina não me passava pela cabeça um persistente temor de violência. Não me queira por isso na conta dos paranoicos, dessas criaturas que, nas grandes cidades, passam a ter medo de tudo diante da disparada da violência dos últimos anos.

Confesso-lhe, leitor, porém, que, em Teresina, só andei mais em carro particular que, no meu caso, era do meu amigo, o ensaísta M. Paulo Nunes, de sorte que não me expus à sanha de algum pivete ou assaltante.

Num final de manhã, notei que, no hotel, não dispunha de papel para escrever, nem de caneta; a que trouxera comigo na viagem se perdeu não sei onde. Lá fui às ruas de Teresina. Algumas delas eu conhecia de priscas eras. Com o tempo, a gente perde um certo traquejo de andar por ruas de nossa cidade. Entretanto, o “eu” do presente era outro, e as ruas, à altura em que as podia identificar, não ficavam em trechos por mim palmilhados com assiduidade no passado.

Mesmo assim, criei coragem e, vendo o nome de uma rua e de outra, alguma, conhecida, outra, não, fui dar na bela Av. Frei Serafim, que divide dois lados de parte da cidade. Indaguei aqui, ali e, por fim, consegui encontrar uma papelaria. Comprei um caderninho escolar de poucas folhas e uma caneta azul. Lembrei-me, então, que teria que comprar um exemplar da edição daquele dia do jornal Meio-Norte. No hotel, depois do café, já havia passado uma vista no exemplar que me interessava, aquele no qual havia uma reportagem sobre mim a propósito de conferência que iria fazer na Academia Piauiense de Letras. A reportagem tinha sido feita no dia anterior por ocasião do lançamento, no Museu Odilon Nunes, de mais um número da excelente revista Presença, com apresentação de M. Paulo Nunes. Procurei o exemplar em mais de uma banca até que o encontrei. A reportagem exibindo foto minha, saíra bem escrita, mas continha um erro. A jornalista que me entrevistara omitira do meu nome literário, a palavra “Filho”. Sem querer, virei o nome de papai. Ainda bem que estava em boas mãos paternas e na mídia jornalística que ele tanto amava.

Voltando a Teresina, tópico principal desta crônica, pude observar outras coisas. Me convenci por completo  de que sou um estranho na cidade. Perdi mesmo o bonde da história de Teresina.

A minha Teresina não é a de hoje. Ela ainda existe e se estende por todo o velho centro da urbe. Lá vejo, intactos, alguns pontos de referências; o Theatro 4 de Setembro, o Rex, a Praça Rio Branco (o relógio!), o prédio do Arquivo Público (ó tempos da infância!) da rua Coelho Rodrigues e que, hoje, comporta também o Conselho Estadual de Cultura, a Praça Pedro II, o Karnak, a Praça João Luis Ferreira, o antigo Prédio dos Comerciários (que, um dia, fora o mais alto edifício da cidade), a Praça do Liceu (ah, sim, Landri Sales!), o Liceu Piauiense, as igrejas de São Benedito, a minha preferida, a do Amparo, a das Dores, a Praça da Bandeira, muito modificada e maltratada, e principalmente as queridas e amorosas ruas da velha Teresina, nas quais tudo nelas me leva inexoravelmente ao passado. Ah, ia-me esquecendo, o velho rio Parnaíba, o Poti (agora com sua enchente e suas vítimas). Enfim, esse passado soterrado no tempo, me está, contudo, vivo e ora me leva à alegria, ora à melancolia. 

O que não se circunscreve a essas ruas, a esses prédios, a essas arquiteturas variadas alcançadas pela minha geração não parece fazer parte da minha memória. A Teresina nova, trepidante, dos arranha-céus não me atrai. Essa Teresina verticalizada se iguala às outras metrópoles, vira mesmice. Nada tem a ver comigo em Teresina.

Relendo os belíssimos poemas de Paulo MachadoPost card/57” e “Post card/77” extraídos do livro Tá pronto, seu lobo? e “Nas ruas da minha cidade há lições? (É preciso aprendê-las)", retirado do livro A paz no pântano (1982), que se encontram na antologia A poesia piauiense no Século XX, de Assis Brasil, vejo que a poesia de Paulo Machado, de alguma forma, me conforta e não me deixa esquecer essa Teresina. Os dois primeiros poemas citados se valorizam pela riqueza semântica resultante de sua arquitetura contrapontística em termos de realidades espaciais semelhantes aliadas a realidades temporais diversas. O terceiro poema, ainda inserido na categoria do tempo fluído, reforça o tom rememorativo de viés rebelde na transposição da realidade histórico-social. Poemas de grande impacto estético que, em mim, despertam, de certa forma, por coincidência ou não do fenômeno poético, quase a mesma sensação provocada por aquela maneira de descrição pulsante, vibrátil, vigorosa, do realismo inusitado de Cesário Verde (1855-1886), como seriam exemplos os versos abaixo do poema “Post card/57":


                                    No mercado central pretas carnudas
                                    Vendiam frito de tripa de porco
                                    Fígado picado e caninha.


Os novos bairros, avenidas, artérias, em suma, o espalhamento topográfico horizontal da cidade me espanta e ao mesmo tempo me dá a sensação de que estou em outro lugar, que nada tem mais a ver comigo, e com o meu espólio (triste espólio devorado pelo tempo!) de relembranças. Estas, por definitivo, vou encontrar num cruzamento qualquer da minha própria Teresina da memória.



Cunha e Silva Filho
via Portal Entretextos

9.12.15

FESTIVAL DE MÚSICA DA CHAPADA DO CORISCO - CHAPADÃO




Em 1995, eu Aurélio Melo e Henrique Costandrade tomavamos umas cervejas em um bar restaurante localizado perto da Praça do Liceu, se não me engano Bar e Restaurante Cearense. Naquele ano existia um Centro Integrado de Arte-Ciarte/Centro, Da Fundação Cultural Monsenhor Chaves, coordenado pelo ator Fábio Costa e o humorista Dirceu Andrade, este sim, em frente a Praça do Liceu. Era um Centro vivo com atividades de literatura, música, dança, teatro, artes plásticas e cinema.

Eu era diretor do Departamento de Arte da Fundação Cultural Monsenhor Chaves, Aurélio era o coordenador de música e Henrique o coordenador do Caminhão da Cultural, um dos mais arrojados programas da Fundação, que era presidida por Dona Eugenia Ferraz. O Caminhão era equipado com som, luz, palco e uma equipe de seis pessoas, servindo a inúmeras associações de moradores, grupos culturais e artísticos, e às atividades da própria instituição, levando música, dança, teatro e cultura popular a diversos bairros de Teresina.

Estávamos exatamente vindo de uma atividade do Caminhão e paramos naquele bar para uma refrescada. Cerveja vai, cerveja vem surgiu a ideia de realização de um festival de música permanente para Teresina, no entanto, um festival que fosse diferente de tantos outros festivais já realizados na capital. A discussão rolou acalorada, e a cerveja, também, mais gelada.

Como diretor da Fundação comprei a ideia na hora. O festival seria realizado com uma nova dinâmica: seriam quatro eliminatórias realizadas nos bairros de Teresina, com a final no centro da cidade; O jurado seria o mesmo para as quatro eliminatórias, e o festival seria realizado com o apoio da associações de moradores e artistas dos bairros visitados. A categorias concorrentes seriam amador e profissional, com premiações distintas. Tudo acertado, precisávamos de um nome, algo impactante que aliasse identidade cultural e que fosse bom de marketing. Veio o veredicto final - Festival de Música da Chapada do Corisco e, como já estávamos chapados de cerveja, veio o subtitulo, chapadão. Assim nasceu o Festival de Música da Chapada do Corisco-Chapadão.

Para viabilização econômica do projeto contávamos com o bom transito de Henrique junto ao então secretario de finanças da Prefeitura de Teresina, Dr. Firmino Filho, por sinal, hoje prefeito da capital. Foi batata. Lançado o edital do festival a área musical de Teresina abraçou a ideia de uma forma surpreendente. Grandes músicos e compositores, cantoras e cantores piauienses participaram do Chapadão, que teve sua primeira edição em maio/junho de 1995.

Bairros como Mocambinho, Dirceu Arcoverde, Parque Piauí, Bela Vista, Piçarreira, Ininga e tantos outros receberam  o evento com festa em praça pública ou nos ginásios poliesportivos. Lembro de nomes consagrados de nossa música que participaram ou foram descobertos pelo Chapadão, como Rubinho Figueredo, Marlon Rodnei, Ostiga Junior, Paulo Utti, André de Sousa, Frank Farias; com shows nos intervalos de Gabi, Terra Francisco, Ensaio Vocal, Miriam Eduardo e tantos outros.

Passados mais de dezoito anos o Chapadão mudou de formato, foi muito modificado, mas ainda continua um grande festival e bastante significativo para a descoberta de talentos na área musical. Neste ano de 2012, eu, Aurélio e Henrique recebemos, no final de sua 18º Edição, realizada no Teatro de Arena de Teresina, uma placa comemorativa pela criação do evento, entregue pelo Presidente da Fundação, o músico e advogado Marcelo Leonardo e pela coordenadora de música, a cantora Luciana. Temos orgulho de algumas coisas na vida. Ter participado da criação do  Chapadão é uma delas.



Ací Campelo,
23 de dezembro de 2012
via blogue do autor

21.11.15

A FONTE DA PRAÇA DO LICEU


                                        em memória do prof. Galvão


traça meu caminho como passa a
linha no fundo da agulha, minha
vista em toda lida afeita ao limbo
que esgotou na mina da praça.

céu de água azul no chão, de graça,
algo de branco sob as saias colegiais.
ao abrigo da libido, líquida cevada
sobe ao cérebro da teresina entediada.

romana ponte de menino travessa
a fonte, os cisnes, deslocados signos,
para sempre presos à retina, a vida
presa ao gole primo na passada praça.

primevo mundo. leviana cidade terna,
onde a água, fonte do eterno, fastia
a vista e desencanta. por que voltam
do passado passos dados sem valia?



Manoel Ciríaco
em agosto de 2003, Teresina/PI

6.3.12

O BAR DO PICOLÉ




Na praça do Liceu, esquina da Rua Simplício Mendes com a Desembargador Freitas, havia o bar onde se fazia o melhor picolé da cidade. Tão natural que vinha o resíduo da própria fruta. Diferente daqueles preparados com água e um pozinho colorido, vendidos nas ruas ou no Lindolfo Monteiro em dia de jogo. O cara gritava picolé de tamarindo e, quando se ia ver, era gelo puro. Da fruta mesmo um sabor distante, pra lá de Timon.

A mulher que atendia ao balcão era pequena e magérrima. Tinha feições de índia e, nos olhos, uma tristeza que causava pena. Não ria, nem falava. Recebia o freguês sem um obrigado. E movia-se devagar como se carregasse um fardo de toneladas.

Por essa época, Milton Rodrigues ainda namorava a tia Aradi - namoro arrastado, sem fim. Ele costumava aparecer lá em casa duas ou três vezes por semana, sempre depois do jantar, para marcar ponto. Os dois colocavam as cadeiras de cipó no corredor que dava para a rua e ficavam sentados, com intervalos de silêncio, como se não tivessem mais nada o que dizer um ao outro. Asseguram que isso é normal em longo relacionamento dessa natureza. Às vezes, ele levava o violão e dedilhava notas desencontradas e trechos de canções românticas, que ela ouvia atenta com aquele olhar de apaixonada, sonhando com o casamento - que viria oito anos depois. Mas sua presença me agradava, especialmente, quando me mandava buscar picolés, que eu trazia numa vasilha de alumínio, com os dedos das mãos enrijecidos. Valia, pois na distribuição minha cota era maior.

Numa dessas noites, tia Aradi comentou que a mulher do bar estava tuberculosa. Conversa que ouvira no trabalho. A partir dali não se compraram mais picolés. Foi o fim das farras que Milton patrocinava, sem exibição. Havia preconceito contra essa doença. Ai de quem a portasse. Estaria condenado à segregação, ao degredo domiciliar. A família isolava seu doente num cômodo de onde jamais sairia. Ali aguardava a morte, às vezes antecipada pela solidão.

O teresinense nunca foi de medo. Criado entre trovões e coriscos, aprendeu cedo a tocar a vida, com coragem e cabeça empinada. Mas, quando se tratava de tísica, ele pensava duas vezes. Até mais. E exagerava nas precauções.

Tio Olinto assimilou esse hábito. Chegado do Maranhão, entrou em pânico ao saber que a casa que alugara havia sido ocupada por um homem devorado pelos bacilos de Koch. Não houve quem o tranquilizasse. Nem o senhorio afirmando que pintara a casa com cal e a desinfetara com creolina. Desfez o contrato e alugou outra na Rua Riachuelo.

Boato espalha-se mais que fogo em palha seca de carnaúba. A história da tuberculose na mulher ocorreu e afugentou os fregueses. Chegou o momento em que não havia mais o bar, nem a mulher, nem os picolés.



José Ribamar Garcia
em Imagens da Cidade Verde
Rio de Janeiro: Litteris ed, 2008