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17.1.16

PESCADOR DE MITO, Wellington Soares


O pescador já pensava em desistir, pois não fisgara nada até ali, depois de horas brincando com a paciência, quando sentiu a vara envergar de repente, sob um peso insuportável, mergulhando a cara no fundo do rio.

Como os anos de pescaria falam mais alto, resolveu cansá-lo primeiro para, em seguida, tirá-lo fora. Só aí deparou-se, para espanto dele, não com um peixe grande, como era o mais provável, mas com a figura disforme do Cabeça de Cuia, mito de sua terra natal, apresentado geralmente como temor dos filhos malcriados.

Sob protestos da mulher, que alegava tratar-se de uma lenda e não de um peixe, mandou prepará-lo no capricho, com leite de coco e muito tempero, degustando-o com enorme apetite.

Ao final, apresentou-se no museu da cidade como o homem que tinha comido o Cabeça de Cuia. Hoje as pessoas que visitam o museu observam, com certa estranheza, aquele homem rude, de sorriso aberto e inscrição no peito, e não entendem o motivo de sua alegria. 


em LINGUAGEM DOS SENTIDOS
Teresina: 1991

22.10.13

AVIÃO




- Paizinho, me conta uma história.

- Era uma vez um doido muito bacana chamado Avião.

- Avião por quê?

- Ele vivia imitando barulho de avião. Assim: ãoãoão. E, com o braço, fazia acrobáticas piruetas, como se fosse um de verdade.

- Que legal! Que mais ele fazia?

- Ah, gostava de distribuir brinquedos para as crianças.

- Um Papai-Noel?

- Sim, o mais bondoso e simpático que já existiu.

- Você ganhou presentes dele?

- Muitos. Ele andava com um jacá cheio de brinquedo. Quando apontava na esquina da Lindolfo Monteiro, desembestávamos alegres para abraçá-lo. Recebia-nos sempre com um sorriso enorme no rosto. Era o mais feliz de nós todos.

- O que ele dava pra você?

- Bola, revólver, pião, carro, peteca...

- E as meninas não ganhavam nada?

- Claro, elas recebiam boneca, pulseira, casinhas para montar...

- Como ele conseguia todos esses brinquedos?

- Comerciantes do Mercado Velho e redondezas davam para ele.

- Por quê?

- Gostavam dele. Também se não dessem, ele pegava assim mesmo.

- Ele seria capaz disso?

- Claro, o Avião era capaz de tudo para ver uma criança feliz.

- Conta mais sobre ele, paizinho.

- Ele vivia pulando o rio Parnaíba da ponte metálica.

- Não acredito!

- Era sim. Ele dizia ser o Tarzan. Botava uma faca na boca e jogava uma boneca no rio. em seguida, batendo nos peitos e dando aqueles gritos, saltava para salvá-la.

- Que corajoso! Ele não tinha medo de morrer afogado?

- Não, salvar a jovem em apuros era o mais importante.

- Você não falou que era uma boneca?

- Falei sim. Mas para ele, que se achava Tarzan, ela era uma garota que precisava de ajuda. Afinal, para que servem os heróis?

- É mesmo! Agora sei por que você fala tanto nele.

- Ele era meu herói preferido.

- Mas por que você está chorando, paizinho?

- Porque ele traz de volta toda minha infância. Ele era para nós, garotos da Clodoaldo Freitas, uma pessoa muito especial.

- Não é melhor, paizinho, você dormir comigo esta noite?



Wellington Soares
em Por um triz
Teresina: Fundação Quixote, 2007

O SUCO DO ABRAHÃO, por Wellington Soares





Quando criança, minha obrigação semanal era ir à novena com dona Mundica, ali na Vila Operária, zona norte de Teresina. Toda terça-feira, se a memória não me trai, estava eu lá, cercado de santos e anjos, aprendendo que melhor do que os pecados cometidos é a sensação de leveza do perdão alcançado. Em troca, exigia apenas algumas moedas para comprar uns picolés Amazonas e uns poucos alfinins, chantagem aceita e cumprida rigorosamente por mamãe, mas só atendida após a celebração religiosa. Com o espírito confortado e o corpo alegre, retornava feliz para casa, saboreando cada um daqueles momentos com incontido prazer. Já deitado na rede, pensava, mesmo não conhecendo ainda Bandeira, que a noite podia descer, a noite com os seus sortilégios.

Agora, sem compromisso e por vontade própria, troquei as novenas de outrora pelos refrescos deliciosos do mestre Abrahão, situado nas proximidades do Instituto de Educação. Toda semana apareço lá, como um montão de gente também, para assinar o ponto: tomar um refresco - que de tão espesso parece mais um suco - e comer um pastelzinho caseiro. Dos sabores, prefiro os de cajá e bacuri, sem igual e que nos levam aos céus. O de abacate é bom nem falar, covardia pura, o negócio é tomar aos poucos e devagarinho, lambendo os beiços e pedindo mais outro. Para quem está resfriado, ou precisando de um reforço no estoque de vitamina C, a casa prepara um suco de laranja no capricho, feito ali na presença do freguês, com mel de italiana usado como açúcar. Na hora do prejuízo, depois de ter enchido a pança, é quem vem a parte melhor de tudo: uns nadinha de reais, um ou dois, com direito a troco ainda, "muito obrigado" e "volte sempre".

E não é que volto mesmo!?, na primeira distração das pelejas do trabalho, estou lá novamente, esperando a vez de ser atendido, não só para saborear os refrescos, mas, sobretudo, as palavras de sabedoria do mestre da Rui Barbosa com a Manuel Domingos. Com a invejável experiência de vida que tem, ele nos serve gratuitamente, apesar da pouca escolaridade, lições importantes de humildade, dedicação e amor ao próximo. Através de cartazes afixados nas paredes do comércio, Abrahão da Silva Gama - o popular ASIGA -, este maranhense de São João dos Patos que reside em Teresina há mais de cinquenta anos, planta nas retinas das pessoas mensagens perturbadoras e educativas, difíceis de esquecer pelo humor sarcástico e engraçado que destilam: "Prove que é orelhudo, preferindo um refrigerante de 1 real e renunciando a um suco por apenas 75 centavos". Ou, então, aquela dirigida aos que têm a mania de consumir sem querer pagar, tentando sair de fininho e sem dar na vista: "Pagar antes está na moda e virou samba! Siga o ritmo e receba nosso agradecimentos".

O mais impressionante, acreditem, é que os preços e a qualidade permanecem, ao longo dos anos, quase sempre os mesmos, um tantinho de nada e uma gostosura que só provando. Com ou sem crise econômica, a clientela festeja e solta foguetes. Todos entram e saem dali com a barriga contente e o bolso satisfeito. Um ambiente, aliás, bonito de se ver e estar, com as mais distintas classes e raças harmonizadas pela fome de comida e saber, instante sublime porque guarda algo de misterioso e primitivo. A imagem comovente de homens e mulheres unidos em torno do sagrado alimento da caça e das reflexões existenciais, que os fortaleciam enquanto comunidade ávida de desbravar as naturezas em geral, sem as distinções ainda absurdas e inaceitáveis que surgiram depois.

Sempre que converso com Seo Abrahão, a quem chamo respeitosamente de mestre, me vêm à lembrança os versos antológicos de Bertold Brecht, nos quais o poeta e dramaturgo alemão exalta os que transformam a vida em uma permanente e apaixonada luta, não só no campo político como em qualquer atividade abraçada com amor e determinação: "Há aqueles que lutam um dia, e por isso são bons; / Há aqueles que lutam muitos dias, e por isso são muito bons; / Há aqueles que lutam anos, e são melhores ainda; / Porém há aqueles que lutam toda a vida, esses são os imprescindíveis". O mestre Abrahão pertence, sem dúvida e na opinião de todos que o conhecem, ao seleto grupo dos que foram escolhidos e vieram com a nobre missão de serem imprescindíveis. Ainda bem que - para nossa eterna e grata felicidade - ele desembarcou por essas bandas da Chapada do Corisco, e acabou se tornando um dos nossos mais queridos e legítimos filhos.



Wellington Soares
Por um triz 
Teresina: Fundação Quixote, 2007

EU, TERESINA E ELE, Wellington Soares


Há seis meses namorávamos e nada. Ao contrário dos outros, bolinar comigo não queria. Como um pedaço de descaminho, no dizer dos rapazes, chateada fiquei. Valfrido, esse era o seu nome, nem aí. Sua estranheza me prendia cada vez mais a ele. Que o amava, não tinha dúvidas, mas não podia continuar subindo pelas paredes.

- Transar comigo, por que você evita?
- Só cai no chão, a manga, quando está madura.
- Tanto tempo assim, como posso?
- Pela bela serrana, Jacó muitos anos esperou.
- Mas eu o amo.
- Amar é saber, no momento exato, tirar o cílio do olho.
- Quando, então?
- De Teresina se embriagar e se despir com pureza.

Com o coração aberto, deixei me levar por suas mãos seguras e macias, descortinando outros horizontes. De barco, o Velho Monge atravessamos para Timon, cruzando com pescadores de redes vazias. Na volta, um suco delicioso no Abraão, tendo como troco palavras de estímulo. À tardinha, um faroeste no Rex, balas de horror raspando minha cabeça. Maria da Inglaterra e seu Peru Rodou, no Clube dos Diários, a noitada fechando, o sabor de cerveja nas bocas geladas.

Acordada cedinho, um café reforçado na Piçarra, ânimo para encarar a arte misteriosa de seduzir. No troca-troca, sob um escaldante sol, o comércio de tudo, menos o do amor, inegociável. O gostoso cheiro da panelada, nunca provada no Mercado Velho, no meu estômago faz alegria. O restante da tarde, navegamos na beleza do encontro dos rios, onde deixei claro ao Cabeça de Cuia não me chamar Maria e muito menos virgem. De bicicleta, à noite, vários bairros da cidade percorremos. Na despedida, sem esperar, ouvi:

- Amanhã, esteja pronta, será o dia.
- Onde? A que horas?
- Dezesseis, na praça da Bandeira, sem atraso.
- Vou de carro?
- Não, sem nada, só você. De lá partimos.
- Que mais?
- Relógio sem ponteiros.

Noite em parafuso, sem conseguir os olhos pregar. A espera, alfinete ferindo o corpo, compensa? Do ônibus, descemos em frente ao motelzinho, mãos coladas e a galope os desejos.

Depois dali, mesmo com os apelos dos velhos, nunca mais retornei, nem fui em casa pegar nada. Ele me bastava. Era, sem exagero, uma pessoa muito especial. Que outro homem, diga, me levaria a conhecer e a amar Teresina? Comendo estas piabas fritas agora, nas coroas do Parnaíba, tendo-o ao meu lado, a vida passa a ter sentido.


Wellington Soares
em Maçã Profanada
Teresina: 2003

Wellington Soares - síntese biográfica




Wellington Soares nasceu em Teresina - PI. Contista e professor. Durante muitos anos organizou o SALIPI (Salão do Livro do Piauí) e atualmente edita a revista de arte e cultura Revestrés. Tem publicado: Linguagem dos sentidos; Maça Profanada; Por um triz; Um beijo na bunda; O dia em que quase namorei a Xuxa.