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27.1.16

ZEZÉ LEÃO, VALENTE E TEMIDO, Arimatéa Carvalho




José Leão (Zezé Leão): Se Pernambuco teve Lampião, no Piauí reinou Zezé Leão. A frase rimada serve para ilustrar a fama dessa figura histórica, polêmica e discutida. Filho de uma das mais importantes famílias piauienses, a Arêa Leão, José nasceu em 1901 e morreu em 1956, num episódio cruel e que dá bem a dimensão do tipo de realidade que cercou seus 55 anos de vida.

Zezé Leão foi morto pela polícia no município de Água Branca e teve o seu corpo dilacerado. No Cemitério São José, onde foi enterrado, os coveiros contam que seu corpo chegou dentro de um saco, tamanha a mutilação sofrida.

A polícia fazia parte da trajetória de Zezé Leão de duas formas. A primeira foi bastante honrosa. Em 1930, após liderar ao lado dos irmãos Miguel, João e Júlio a Revolução no Piauí, ele recebeu o título de capitão da Brigada Militar que, mais tarde, viria a ser a Polícia Militar. Como militar, Zezé foi valente e temido.

Seu segundo envolvimento com os militares, no entanto, revelou-se desastroso. Próximo do Quartel Militar, que funcionava no prédio do Centro Artesanal, na Praça Pedro II, Zezé reencontrou-se com o capitão Vanderlei numa mesa de bar. O oficial já havia detido Zezé por homicídio. Segundo registro da época, o "Lampião do Piauí" matara um soldado. Gole vai, gole vem, surge uma discussão a respeito da prisão do Zezé. Bem mais alto e forte, o capitão dá um soco no valente jovem. Horas depois, o militar estaria morto. Zezé foi à sua casa, pegou uma arma, voltou a abateu Vanderlei.

A prisão de Zezé Leão não representou o fim de sua história de mortes e coragem. Folclore à parte, a maioria das mortes não ocorreu por crueldade ou capricho. A origem de sua fama de matador está num conflito de terras envolvendo sua família, os Arêa Leão, e o coronel José Liberato, outro grande latifundiário da região do município de São Pedro - que depois daria origem a um punhado de cidades como Água Branca, Hugo Napoleão e Miguel Leão (homenagem ao mais velho dos quatro irmãos homens da família).

A briga entre os Arêa Leão e Liberato pela posse de terras se alastrou por mais de uma década no interior do Estado. Foi o conflito armado que provocou o aparecimento do bando de jagunços, profissionais contratados para executar "serviços" e proteger as fazendas. Zezé Leão e seu bando ficaram famosos, mas há grande diferença entre ele e Lampião: enquanto o primeiro era latifundiário e de família tradicional, o outro era um nômade errante.

As mortes de ambos os lados terminaram em processo na Justiça. O julgamento do coronel José Liberato ocorreu no Tribunal de Justiça que, à época, instalava-se no prédio do hoje Museu do Piauí, em frente à Praça da Bandeira, no centro de Teresina. Liberato era acusado pelos Arêa Leão de homicídio e o evento mobilizou toda a capital. Os advogados do coronel, Adolfo Alencar (tio do empresário Valter Alencar) e Mário José Batista, também eram brigados, o que provocou uma curiosa defesa: cada profissional usou uma tese. Liberado foi absolvido. Ainda hoje a vida de Zezé Leão é tabu. Sua família se recusa a comentar o assunto.

Um dos filhos, Altamiranda, funcionário da Prefeitura Municipal de Teresina, informou que os irmãos ficaram magoados quando um escritor tentou publicar livro com o título "O Cangaceiro Zezé Leão". A família não divulgou o nome do escritor. Os jornais das décadas de 40 e 50 têm registros de episódios envolvendo Zezé Leão.

História Macabras e Cruéis, o folclore tratou de embaralhar o que é verdade e o que não passa de ficção na vida do temido Zezé Leão. A coragem do ex-militar deu origem à frase "valente que nem Zezé Leão", bastante comum no interior piauiense.

Conta-se que, no final da tarde, ele sentava-se no alpendre do casarão da fazenda Altamira, em São Pedro, e escrevia seu nome na fachada do imóvel usando o revólver. Embora seja difícil imaginar tamanha destreza com um revólver a ponto de desenhar letras com rajadas de balas, a história correu o Estado e hoje é contada como verdade.

Em outro episódio, Zezé Leão viu um negro assoviando e perguntou qual era a música. "É Asa Branca", respondeu o negro. O valentão mandou o rapaz assoviar até inchar os lábios e depois disse para ele ir embora. Quando o negro ia cumprir a ordem, Zezé o matou com sete tiros de revólver.

Segundo a tradição popular, Zezé teve duas orelhas arrancadas e penduradas num cercado, antes de ser morto, em 1956. Mas a versão oficial não registra o fato.

Entre as muitas histórias, duas são verdadeiras: Zezé Leão mandou dois de seus jagunços capturarem no Bairro Vila Operária, numa obra do colégio Leão XIII, dois trabalhadores que haviam fugido da fazenda da família. Os jagunços levaram os homens à força, alegando que eles tinham saído das terras de Zezé com dívidas. Os dois nunca mais foram vistos.

Além disso, o polêmico membro da família Arêa Leão destruiu um dos jornais de Teresina por motivos políticos, conforme relato do prefeito Wall Ferraz em seu livro de memória.

No Cemitério São José, na zona Norte de Teresina, os coveiros mais antigos relatam a fama de valentão de Zezé. Passando 42 anos de sua morte, o "Lampião do Piauí" sobrevive em episódios impressionantes, sejam verídicos ou fantasiosos.

De acordo com um deles, não foi a polícia que matou Zezé. Ele teria sido assassinado por um caboclo e só então os militares se apossaram de seu corpo.

O ex-capitão da Brigada Militar foi casado com dona Olinda e tem muitos herdeiros vivos, entre filhos, netos, bisnetos e sobrinhos. A maioria não gosta de lembrar o passado.

"Eu Conheci Zezé" - Zezé Leão era educado e gentil quando estava sóbrio. "O problema acontecia quando ele bebia", relembra o professor Moaci Madeira Campos, que conheceu o valentão pessoalmente e protagonizou um curioso episódio com o homem que virou sinônimo de coragem.

Durante a Segunda Guerra Mundial, o Brasil vivia em estado de sítio informal. Os cidadãos precisavam de um salvo-conduto para viajar dentro do pais e o clima era de tensão. O professor Moaci Madeira Campos tentava visitar a noiva no interior e aproveitava o único caminhão que fazia o percurso. Quando o veículo chegou ao posto militar situado no Bairro Tabuleta, na zona Sul da Capital, a polícia mandou o motorista parar:

Foi exigido o salvo-conduto de todos os ocupantes do caminhão. Como o documento do professor estava com prazo vencido, o militar responsável pela fiscalização disse que não permitiria que ele prosseguisse. "Aí Zezé Leão virou para mim e disse: O senhor vai viajar sim, professor. Vamos ver se o senhor não viaja!", relata Madeira Campos. Ele confessa que ficou com medo da reação de Zezé, caso o militar resolvesse comprar a briga. "Mas, graças a Deus, fomos liberados e não aconteceu nada", conta o professor.

O segundo encontro entre Madeira Campos e Zezé Leão não foi menos interessante. Dono do Colégio Leão XIII, o professor recebeu a inesperada visita do ex-capitão. Ele estava bêbado e reclamava que havia discutido com o dono do colégio onde seus filhos estudavam. "Fiquei com medo que ele pedisse para transferir os alunos para meu colégio, pois não me relacionava tão bem com o dono do outro estabelecimento. Mas o convenci a não levar o caso adiante", diz.

Segundo Madeira Campos, Zezé era de "fino trato" e muito de sua fama surgiu dos conflitos armados entre a família Arêa Leão e o coronel José Liberato que, por incrível que pareça, era parente desse grupo familiar.



Arimatéa Carvalho
em Jornal Meio Norte, Alternativo, 
9 de agosto de 1998

A PENITENCIÁRIA, José Ribamar Garcia




Nasci atrás da penitenciária, numa casa de meia-água, com a fachada desbota e avermelhada pela poeira da rua de terra solta. Não tinha luz elétrica, nem água encanada. Mas era de telha, o que representava segurança, porque, na época, a cidade vivia sob o terror dos incêndios. E estes só aconteciam nas casas cobertas por palhas de carnaubeira ou babaçu. Havia dia de ocorrerem de três a quatro incêndios. Fato nunca investigado devidamente pelas autoridades, que acabavam jogando a culpa nos políticos da oposição. Estes replicavam, dizendo que o governo queria livrar a cidade dos pobres, por isso lhes queimava as casas. E aquela fora a melhor que meu pai conseguiu alugar para alojar a família. Recém emigrado do Maranhão, ele ganhava a vida trabalhando exaustivamente, fazendo de tudo na garapeira do amigo conterrâneo. E eu cheguei naquele clima aterrorizante, numa madrugada chuvosa de modo inesperado até, sem parteira por perto. O que obrigou o papai a sair, no temporal, às carreiras, pela cidade que pouco conhecia, à cata de uma. Mas não deu para esperar. Quando ele chegou com a parteira, por sinal semicega, eu já estava entre as pernas de minha mãe, esperneado aos berros. O cordão umbilical foi cortado pelo tato.

A penitenciária me fascinava. Não pela dimensão de seu prédio, ou pela altura de seu muro, coberto por fios elétricos descascados. Conta-se que fugitivos morreram eletrocutados por esses fios. Essa fascinação consistia numa curiosidade de saber o que se passava no interior e como era a vida de sues habitantes e a razão que os levara para ali. Quando indagava às pessoas grandes esse motivo, respondiam-me com evasivas respostas, ou de modo vago, lacônico, talvez por comodidade ou por acreditarem que criança não deveria saber dessas coisas. E me enfatizavam que preso não prestava, era gente ruim, sem alma, capaz de tudo. Isso, com certeza, me foi desenvolvendo um sentimento para com ele de repulsa, desprezo. 

Quando via a turma de presos limpando as ruas, as praças ou descendo escoltados, à Firmino Pires, rumo ao tribunal, sentia algo como se fosse nojo. Realmente, pareciam uns páreas: maltrapilhos, subnutridos. Espantava-me que os meninos de minha rua não tivessem o mesmo sentimento, pois demonstravam admiração e até piedade. Também não me metiam medo. Nem mesmo um de quem diziam que matava crianças para comer os miolos. Dos famosos, sobres os quais corriam estorias de bravura e valentia, como o Catnã ou Zezé Leão, simplesmente, eu não acreditava nas estorias. E os achava iguais, sem valor algum. Nos julgamentos de crimes envolvendo gente importante, que a Rádio Difusora se preocupava em transmitir, sempre me colocava ao lado da acusação. Não me deixava inclinar pelas palavras bonitas da defesa. E me revoltava com a absolvição. No entanto, a curiosidade de saber o cotidiano da cadeia estava comigo.

Gostava de passar pela sua porta de bicicleta, ou nos ônibus que faziam as linhas de Timon e Matadouro, a fim de espiar o seu interior. Mas não via além do portão de ferro dividindo o longo corredor de entrada. À frente, do outro lado da rua, sob enormes árvores, os guardas passavam o dia conversando, enquanto um se escondia dentro da guarita. Viam-se, também  em conversas com os soldados, alguns presos, certamente os de bom comportamento ou financeiramente remediados. Aliás, não se notava preso endinheirado limpando logradouros públicos. Essa discriminação me causou estranheza. E me mostrou o inverso da moeda. A sociedade traça normas de conduta e quem as violar será segregado, isolado; Porém, se o violador for possuidor de bens materiais, a regra é mudada. A própria sociedade se inclina, se corrompe, invertendo seus valores. Percebi cedo na farsa dos julgamentos. A balança da justiça pendendo contra o pobre de dinheiro para vergonha da deusa Nêmesis. 

Ao lado do portão de entrada, espalhados sobre a calçada, os presos expunham, à venda, seus trabalhos de artesanato, feitos de madeira, cerâmica, embira. Bem elaborados, confeccionados. Caminhões de madeira com réplica de várias marcar de carros de verdade. Mas, impulsionado pelo meu sentimento, acima dito, preferia os caminhões de buriti que meu irmão fazia e com os quais brincava, enchendo-os de capim, apanhado no próprio largo da penitenciária para dar de comer aos meus preás-do-rei. Mesmo porque os que meu irmão fazia, além de mais bonitos, não custavam dinheiro.

Nesse largo que se estendia diante do prédio, até circo fora armado, mas depois a prefeitura suspendeu licença para essa finalidade, alegando medida de segurança. Já se falava em segurança... Tolice, aqueles presos subnutridos não tinham força para se evadir. Nunca ouvi falar de fugas, nem de tentativas, pelo menos, em massa. Os que conheci, mais tarde, viviam resignados, conscientes de que estavam pagando o crime cometido. E ainda respeitavam a Justiça, inclusive conhecendo a sua vulnerabilidade.

O sentimento de repulsa, nojo, que eu tinha daqueles infelizes foi, com o decorrer do tempo, me abandonando. Exatamente à proporção que esse mesmo tempo me foi exibindo o lado real, cru, incolor do homens. E constatei que nem sempre o transgressor é o único culpado de seu ato. Uma série de circunstâncias, um conjunto de coisas complexas o faz transgredir. E nem a sabedoria das ciências, ainda, conseguiu transpor esse obstáculo, no sentido de evitar ou compelir o desvio desse comportamento. O homem permanece na sua ilha, fechado, isolado, incógnito dele mesmo, sobretudo.



em Imagens da Cidade Verde
Rio de Janeiro: Litteris ed, 2008

1.11.11

TERESINA NO PASSADO, Guaipuan Vieira


No final de maio de 1996, retornei a Teresina, integrando a Comissão de Intercâmbio Cultural de Fortaleza, a convite da Academia de Letras Vale do Longá. Ficamos hospedados no Hotel São José, à margem direita do rio Parnaíba, no coração da Verde Capital. Além da Ala Feminina da “Casa de Juvenal Galeno”, estavam o diretor desta, o escritor Alberto Santiago Galeno e o poeta Paulo de Tarso. Alberto me pedira para levá-lo ao Mercado Central, pois desejava comprar um chapéu de vaqueiro feito no Piauí. Eram quinze horas de sábado. O silêncio pairava no centro, devido o final de semana. Mesmo sabendo que àquelas horas seria impossível encontrar o mercado aberto, tive que atender o pedido.

Alberto, que caminhava a passos lentos e, cambaleando, estava calado, mas observador. Paulo, que nos acompanhava, admirava os velhos casarões e o rio que solitário descia entrecortado pelas coroas, indagou a Alberto:

- Doutor, o senhor conhecia Teresina?

Ele, sem pensar, duas vezes respondeu:

 - De passagem. Guaipuan não nos conta a sua história.

A responsabilidade pesou-me nos ombros. Calado, como menino repreendido, não sabia por onde começar. As recordações refletiam à mente. Mas uma luz me surgiu dos anos 60. Tive que superar o desafio, e conjugar costumes, tradições e modos de vida de um povo que, embora embriagado pelo vício e prostituição, deixara página de sua história, vez por outra folheada por algum pesquisador.

 - Isso aqui foi a famosa Palha de Arroz. O nome vem das torrefações. Nesse meio funcionou o baixo meretrício, o Q.G. era o cabaré Barrinha, conhecido por “tabaco”, freqüentado pelos “porcos-d’água”, que eram os ajudantes das embarcações.

Paramos um pouco, sob a sombra de oitizeiros, direcionados para o sul, a uma distância de 200 metros. Articulando, mostrei-lhes onde funcionava a usina termelétrica, que fornecera energia para toda a cidade, até a década de 60, substituída por uma caldeira a diesel, vinda de Alagoas, não esquecendo seus ritmados apitos como de uma maria-fumaça, que até as 21 horas servia-nos de relógio, quando num toque de despedida saudava a noite, que paulatinamente ia em busca do novo dia. Nessa época, o rio Parnaíba era navegável. De longe também se ouvia o rugir dos vapores, lanchas e alvarengas vindos do sul do Estado, transportando mercadorias e passageiros, em direção ao Porto, que ficava limitando a Praça da Bandeira, por onde iremos passar.

Recomeçamos a caminhada. Ao cruzarmos a rua Paissandu, fizemos outra parada. Não poderia esquecer de citar que fora o núcleo dos tradicionais cabarés, como “Estrela”, “Fascinação”, “Imperatriz”, “Nove Horas”, “Gerusa”, “Raimundinha”, “Joana de Paiva”, entre outros. Subimos na rua em direção à Praça Pedro II. Na mente conduzia a surpresa que Alberto tanto esperava. Uma outra parada não fazia mal. Afinal, procurava descrever Teresina no passado, mostrando-lhes os pontos que serviram de concentrações desses personagens.

 - Onde estamos? Indagou-me.

 - Olhe, nessa casa comercial, “Rádio Ion”, foi o bar do Zé Cazuza. Às 12 horas de uma sexta-feira de 1948, o tenente Wanderley bebia aqui. Ao perceber a passagem de Zezé-Leão, o chamou. Depois de uma ligeira conversa, lembrou-lhe que em certa ocasião tinha-o prendido. Zezé, calmamente, embora entrecortado do insulto, perguntou-lhe se ia demorar no bar. Ele, ufano de autoridade, respondeu-lhe que sim. Zezé, enfatizou:

 - Voltarei logo.

Em questão de 20 minutos, o lúgubre estúpido, armado com um revólver 38, mudava o ritmo da cidade. A rádio Pioneira, que funcionava na rua Senador Teodoro Pacheco, aqui, próximo, em primeira mão, divulgou o acontecimento em reportagem exemplar de Carlos Said. No dia seguinte, as manchetes dos principais jornais: “ZEZÉ-LEÃO MATA TENENTE WANDERLEY E FOGE".

- Ah, foi assim! Sua fama chegou no Ceará, exclamou Alberto.

Paulo, aproveitando a deixa, nos contou que seu tio-avô, Cel. Domingos Gomes de Freitas, que residia em Tauá CE, tinha um criado que era o responsável pela compra de mantimentos (gêneros alimentícios) da Casa Grande. Segundo seu avô, certa ocasião, o criado, chegando de viagem, já na entrada do município, fez uma ligeira parada numa venda para beber uma pinga. Ao pagar a dose, foi surpreendido pois já estava paga. Ele então perguntou ao dono da venda o nome do desconhecido para agradecer. Esse, ouvindo, respondeu-lhe:

“José de Área Leão
A onça sussuarana
das matas do Piauí".
- E você quem é, caboclo?
Sem bater pestana, que nem um bom improvisador, informou-lhe:

“Eu sou um cachorro preto
da zona do cariri
acuador de onça sussuarana
das matas do Piauí”.
E até logo!!!

Zezé baixou a cabeça, bebeu outra pinga e exclamou: “muito bem!” Um dos seus seguranças indagou-lhe: “Pega o homem, coronel?!

-“Não. Cachorro que acua onça é respeitado".

Continuamos a caminhada. Logo estávamos na Praça Pedro II. Ali, para mim, foi um pesadelo. Não controlava as ideias, que se misturavam com as lembranças, dificultando concatenar o raciocínio, porque a Praça continuava sendo o cordão umbilical dos que edificaram a invejável história da terra.

De um lado, o Centro de Artesanato, guardando consigo lembranças do velho quartel da polícia militar. Do outro, o Cine Rex, solitário, que nem ancião, nem parecia que vencera os seus concorrentes: Cine Guarany, Olímpia, São Luís, Rio Branco, entre outros. Um cartaz lembrava Alfredo Ferreira que foi o fundador do cinema em Teresina, e o primeiro filme exibido, que era norte-americano e falado, tinha como título: “Doce como Mel.”

O Theatro 4 de Setembro, guardião da cultura, silencioso, trazia consigo recordações da luta ferrenha que travou para se desligar do cinema, para ser o que é: palco de espetáculos teatrais. Ao lado, a Galeria das Artes, num oculto quadro, descrevia o saudoso Bar Carnaúba, cercado de artistas e intelectuais. As horas corriam. Alberto, mergulhado no impressionismo, esquecia a compra do chapéu. Paulo não perdia nada da explanação. Anotava, na agenda, os subsídios para a história do município.

Guia turístico, contador de história ou causos. Sei lá quem eu era. Prosseguimos. Seus entusiasmos aumentavam. Embora quisesse parar a narração, não podia. Sempre algo chamava a atenção.

O silêncio recordava-me os tempos idos, quando menino, de calça curta, procurando remédio nas farmácias Santo Antônio, Lili e São Pedro, de Pedro Vasconcelos. Não encontrando, ia direto à farmácia “Coleta’, onde Jaime da ‘botica” fazia a manipulação de medicamentos. Naquele tempo era assim. Com essa reflexão sobre o passado, logo chegamos à Praça Rio Branco. Estava a esmo. Não parecia o logradouro de concentração de poetas populares, da ceguinha Maria Viana, no órgão, interpretando canções bregas; de aposentados driblando a velhice, tentando afeiçoar a nova geração. A brisa fria da tarde os enchia de indagações, estava num árduo ofício, não podia dissolver fatos do folclore teresinense.

-Nesse prédio da Caixa Econômica, funcionou o comércio do Carcamano, à noite tinha uma preta velha vendendo manuê; a fatia do bolo custava um tostão, e media um palmo. Tornou-se admirada pelo pessoal de vida noturna, através dos improvisos de propaganda:

“Chega gente, está na hora
Compre logo o manuê,
Compre mesmo, sem demora.
Manuê da preta velha
Tem segredo de essênça,
Inda mais com bom café
Muda até sua presença”.

Observa-se, de certa forma, que a cultura popular, destacando-se a poesia, nasce da necessidade de sobrevivência dessa gente. A não importância desses fatos contribui veementemente para o anonimato do autor, o que aconteceu com modinhas, adágios e alguns provérbios.

-Com certeza, enalteceu Alberto. Tive que ser breve nas citações, haja vista que algo mais nos aguardava. Estamos na Praça da Bandeira.

Recorda-me o pequeno zoológico, a feira dos pássaros e a do troca-troca. Nessa época chamava-a de bacia, por formar um círculo e ser de baixo relevo. Deu guarida a grandes circos, como Garcia, entre outros. Hoje, as grades que a cercam, nos reflete a ligeira impressão de que é prisioneira, e que nada tem de majestosa! Vê-se silente, concentra suas atenções no Teatro de Arena, palco dos acontecimentos culturais, de ação preservadora das tradições da terra.

Veja “Domingos Fonseca”, do alto, sussurra a poética sem jaça, em louvação aos poetas que versejam “sua poesia”, nos Festivais de Violeiros do Nordeste. Eram 17h30min, os pardais começavam a harmoniosa sinfonia sobre os frondosos oitizeiros, em contemplação a mais um dia que se findava. Apressamos os passos, cruzamos o Mercado Central, logo saímos no desativado Cais do rio Parnaíba. De retorno ao hotel, oportunidade em que falei sobre o Velho Monge, das extintas carrancas e dos banhos aos domingos nas piscosas águas, onde as coroas são atraentes praias, que desfilam preciosas sereias, musas inspiradoras que nos confortam a alma, principalmente quando se tem um bom anzol. Alberto, satisfeito, sorriu. Paulo ficou ansioso para conhecê-las. Seguimos para o hotel, contemplando o pôr do sol, rica beleza natural. Alguns minutos, como se fora beber água, os deixei à vontade. Próximo ao hotel, Alberto exclamou:

-Gostei bastante do passeio e da sua narração. Só me falta o chapéu!


Guaipuan Vieira