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19.10.13

A LOUCA DA INFÂNCIA




O vestido rasgado, o corpo sujo, o rosto deformado por corte e pancadas, as mãos calosas cravadas nos cabelos desgrenhados na constante caça aos piolhos: Ratazana nas ruas da infância. Quando ela passava, catando restos de comida dos lixos, os meninos a cercávamos e, atirando pedras na louca, gritávamos:

- Ratazana!, tira!, tira!

Ratazana levantava a veste surrada, um sexo cabeludíssimo surgia, os meninos em cio vibrávamos, os paus latejando entre as pernas.

Zezinho perguntava: pé-de-pau? O coro respondia: tamarindo. Era a senha. Então André, o filho do bancário, ia a casa, trazia uma lata de doce. Chamariz infalível. Ratazana, morta de fome, não pestanejava, seguia André, ou melhor, o doce. Pouco depois, achávamo-nos sob o pé-de-tamarindo.

Começava a algazarra. Cada um queria ir primeiro. A maior briga. Todo mundo seco. Mas André botava moral, o doce é meu, dizia, arrogante, quem come ela primeiro sou eu. Ratazana, os olhos grudados na lata de doce, deitava-se, abria mecanicamente a pernas, André a cobria, depois outro, e outro, e outro...

No fim, Ratazana, exausta, arrasada, curvava-se sobre a lala de doce, comia avidamente. Depois, o estômago feliz, paspalhava-se a olhar pra gente com uns olhinhos tão meigos, com um sorriso tão cativante, que eu voltava pra casa com uma dor no peito, um ódio de mim, dos homens, do mundo.

Um dia chegou-nos a notícia: Ratazana morrera. Atropelamento. Nunca vi a molecada tão triste. Onde despejar o esperma acumulado? Tinha a masturbação, tinha o Morro do Querosene... mas não eram a mesma coisa.

Continuamos a frequentar o tamarineiro. Como um ritual em homenagem à mendiga, cavávamos buracos debaixo da árvore, metíamos o pau dentro, gozávamos, e fornicávamos, fornicávamos...

Hoje, passado tanto tempo, lembro-me de tudo com extrema nitidez. E me revolto ante essa minha primeira lição de miséria.



Airton Sampaio
em Painel de sombras 
Teresina: Edições Piçarra, 1980

18.10.13

3 POSTAIS DE TERESINA




Postal I


Na Paissandu e adjacências bêbados passeiam
equilibrados sobre a corda bamba dos pés.
Velhas meretrizes sem freguesia
conversam e cospem na calçada.
Nas noites serenas de serenatas
as luzes mortiças dos postes
espiam de pálpebras cansadas
os amores camuflados clandestinos (in)decentes.
Os amores puros, sem rotas e rótulos.
A lua, velha safada, espreita a intimidade
das alcovas dos casais.



Postal II


No Morro do Querosene

- sem quero, sem querosene e sem gás -
a miséria mora em cada casa
sem água e se luz.
Um bolero ou tango
                          tange o tédio.
De repente, um tiro na noite.
Assassinato ou suicídio?
Último ato: cai o pano de silêncio
sobre o silêncio do morto.



Postal III

O Morro do Urubu
se muito foi terá sido
morro do urubu chumbado, morro do
urubu chagado, sifilítico e faminto.
O Morro do Urubu
hoje é Morro da Esperança.
Esperança de quem?
Daqueles que nada esperam
em sua ab / só / luta miséria.
Morro da Esperança????????
Morro dos bastardos da vida,
dos pobres, dos desvalidos.
Morro da morte matada,
morro da morte morrida,
morro da morte em vida:
Morro da (des) Esperança.



em Poemágico, A Nova Alquimia
Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1985

2.12.11

FERRÉ, José Pereira Bezerra


Duas horas da madrugada dum domingo. No Morro do Querosene a movimentação diminui: as portas dos quartos das Putas, fecham-se e não mais se abrem, mas ainda ouve-se sons de copos que se confundem com gritos histéricos e exaltações de bêbados. Defronte a um cabaré, Ferré, homem alto e magro, trabalhador braçal, cambaleia ao ritmo do peso do próprio corpo. No dia anterior, da construção rumou aos botecos - encher a cara de cachaça - deixando a mulher e os quatro filhos dormindo sem jantar. Quando chegasse em casa tinha certeza da briga que a mulher devia estar aprontando, a exemplo de ocasiões anteriores "e com muita razão". Maria não se conformava com a atitude irresponsável do marido, e não raro trocavam tapas e pontapés sob os olhares lacrimosos das crianças amedrontadas. Ferré, não obstante a embriaguez tolher-lhe o cérebro, quer dormir com a família. Já está sem dinheiro, e a vontade é traída pela fraqueza do corpo. Rodopia, não sai do lugar. A cabeça doí-lhe e um mal-estar no estômago aflora. Acerca-se da calçada quase de quatro, senta-se com dificuldade. Minutos após está estirado em decúbito dorsal, dormitando, com as pernas afastadas em da outra, a camisa aberta, suada e suja de vômito. Adormece. Ao amanhecer, acorda atordoado com o sol ferindo-lhe os olhos. Moroso, senta-se e se põe a pensar na sua condição de pobre, bêbado e de pessoa. Não vê diferença. Senta-se envergonhado e num assomo de emoção, chora convulsiva e covardemente. Sai cambaleante, arrasado. Não deslumbra outras formas de desabafar o desespero, a não ser bebendo cachaça e/ou brigando com a mulher. E ainda existem pessoas que acham a situação de Ferré e sua família muito normal e até necessária. No caminho muitos vêem-no e dizem prosa: "a cachaça te mata", "a cachaça ainda mata o diabo". Ferré não responde, segue em frente, mas um palavrão contido às pressas escapa numa cusparada liguenta, (...). Baixa a cabeça, cerra as pálpebras e evita o pior, humilhado.


José Pereira Bezerra
em O Sono da Madrugada 
Teresina: Editora Piçarra, 1976