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15.10.18

TERESINA ANTIGA, A. Tito Filho


Nos festejos de São João acendiam-se inúmeras fogueiras e se enfeitavam as ruas de patis. Defronte do palácio do governo exibia-se o boi do Manoel Foguista. A cidade tinha mais casas de palha do que de telhas. Quase não havia muros nos terrenos, cercados de talos de buriti. Fabricavam-se cigarros de duas marcas: CONDOR e REI DE PAUS. Principais operários da fabricação: Antônio Cazé, Leônidas Carvalho e Domingos Ferreira. Fazedor de imagens de santos, Vitor. As quadrilhas nos bailes eram marcadas pelo funileiro Gervásio, de fraque. Fabricante de violão, Lourenço Queirós. BANDAS DE MÚSICA: a dos Almeidas, a do Azevedo, a de pau de corda, composta de violão, flauta e pandeiro, entre outros instrumentos, propriedade de Pedro Tonga. A professora de música Ana Bugyja Britto mantinha orquestra para tocar nas novenas e aniversários. As bandas da Polícia e do Exército exibiam-se nas retretas da praça Rio Branco, dividida em duas áreas, a da alta-roda, ou gente de PRIMEIRA, e  a de segunda classe: ÁGUA. Denominavam-se cargueiros os animais carregadores de água do rio para as residências, vendida de porta em porta. Pessoas ilustres apanhavam o precioso líquido no seus próprios animais. CAVALOS. O cidadão Boeiro, morador no Barracão, fundou uma escola para que os cavalos aprendessem a marchar, esquipar, trotar. Dia de domingo realizava-se corrida desses quadrúpedes do centro da cidade até a Catarina. Esporte dos ricos. Boeiro vendia fumo de corda. Homem de posses. Emprestava dinheiro até ao Estado em dificuldades. ARROZ. A primeira máquina de beneficiar arroz pertenceu ao cidadão Manoel da ria São José, hoje Félix Pacheco. Ainda trabalho se dava às pisadeiras, no pilão, iniciavam a tarefa pelas três da madrugada no bairro Vermelha. CABARÉS. Animados. Danças até de madrugada. Cada rapariga tinha sua alcova, com cama, rede, penteadeira. Serviço de bar. Mulheres sempre novas. Havia intercâmbio de prostitutas de São Luís, Fortaleza e Teresina. Principais lupanares: Rosa Branca, Raimundinha Leite, Gerusa, na década de trinta e quarenta. Famoso também o cabaré da Calu na Piçarra. No carnaval as meninas alugavam caminhão e participavam do corso pelas ruas da cidade. As mais aplaudidas pelos machacás. CINEMAS. Quando me entendi, eram 3 as casas exibidoras: Royal, para molecada, bancos de madeira, sem encosto, o "Olímpia", na praça Rio Branco, da elite. Muita elegância nas sessões dominicais. A princípio, fitas mudas acompanhadas de música por artistas da terra, e o Theatro 4 de Setembro, que inaugurou o cinema falado em Teresina, a partir de 1933. Depois surgiram o "Rex", o "São Raimundo", o "São Luís", o "Royal", segundo deste nome. Muito namoro em todos eles. Namoro forte. O Teatro e o "Olímpia" ofereciam, sábado e segunda-feira, respectivamente, entrada gratuitas as meninas da Escola Normal. Os gajos pagavam. Na escuridade das salas de projeção, nesses dias saudosos, vigorava a bolinação. Uma pouca vergonha, rapazes agarrados nos seios das garotas. Uma graça Teresina. Boa de viver. Inesquecível para os que a conheceram nas suas graças e atrativos.


via Jornal O DIA
em 04 de novembro de 1988

21.11.15

MEMÓRIA PEDRO II, por M. Paulo Nunes



Houve um tempo em que a vida social e política de nossa capital era feita em suas duas principais praças, a Rio Branco e a Pedro II, esta mais nova, uma vez que a João Luiz Ferreira, sem dispor ainda do necessário tratamento urbanístico, o que somente ocorreria por volta da década de 50, era destinada apenas aos festejos juninos que a animavam uma vez por ano.

Na Rio Branco, a mais antiga, que vinha das origens da capital, onde ficavam os bares, os cafés e o cinema Olympia, de propriedade do Sr. José Ommati, se fazia a vida política, social e literária, ora, no Bar Carvalho, ora, no Café Avenida, todos já desaparecido, o último dos quais criminosamente convertido num estacionamento de automóveis, na última reforma do Hotel Luxor, o antigo Hotel Piauí, realizada pelo governo do Estado, na década de 70. No Bar Carvalho, com um excelente restaurante, em que se destacava o bife a cavalo do famoso cozinheiro espanhol Gumercindo, reuniam-se os políticos, os juízes, os desembargadores e os professores da Faculdade de Direito, que funcionava no prédio do antigo casarão que abrigava algumas repartições do Estado, também criminosamente demolido para dar lugar ao edifício da Receita Federal, originalmente destinado a um centro administrativo e transferido, de mão beijada, como se dizia, ao Governo Federal, que o concluiu.

No Café Avenida, se reuniam, ordinariamente, os intelectuais, os membros da Academia Piauiense de Letras, que ali realizava, inclusive, suas eleições, e a colônia síria que formava, todas as tardes, uma roda de conversa em sua língua.

A Pedro II teve vida mais recente. Quando vim para Teresina, continuar meus estudos e preparar-me para a vida, em 1938, já ela existia, inaugurada que fora, no ano anterior, com o nome atual. Agora restaurada, não integralmente, em sua feição ordinária, dá uma ideia, entretanto, de como ela era. No plano superior, junto ao antigo Quartel de Polícia, hoje Centro de Artesanato, reunia-se o pessoal chamado de 2ª, constituído de empregadinhas domésticas, soldados de polícia e a arraia miúda, em seus namoricos de ocasião. Havia ali também o coreto, ora restaurado, não como fora anteriormente, onde, às quintas-feiras, a banda de música da Polícia Militar executava o seu nutrido repertório, constituído de dobrados famosos como o “Capitão Caçula” e “Juarez”, este, em homenagem ao Cap. Juarez Távora, herói da Revolução de 30: “Juarez, Juarez, o teu nome é uma glória / o Brasil te consagra o general da vitória.”

Na parte inferior, se reunia a chamada elite, com moças e rapazes desfilando em sentido contrário, a fim de que os olhos pudessem encontrar-se, já que os corpos teriam que manter-se à distância, segundo os rígidos costumes da época.

A praça era ladeada por algumas residências e na parte oeste, por alguns cafés e um arremedo de hotel, bastante chic para a época, chamado Hotel Central. Ao lado do Theatro 4 de Setembro, que à época funcionava como cinema, de propriedade do Sr. Alfredo Ferreira, salvo quando aportavam alguma companhias teatrais, alguma famosas, o que era freqüente, foi aberto, a partir do final da década de 30, o Cine Rex, cujo proprietário era o Sr. Bartolomeu Vasconcelos.

No centro do passeio da Praça, havia um sugestivo globo de luz, de cor esverdeada, em torno do qual se reuniam, em meados da década de 40, os plumitivos das letras, superiormente indiferentes ao fascínio do eterno feminino que mostrava suas formas exuberantes à curiosidade dos rapazes do nosso tempo, enquanto, nós outros, superiormente nos empenhávamos em discussões bizarras, sobre literatura, política, filosofia e outros temas inúteis. Quanto tempo perdido!

Ali nos reuníamos H. Dobal, nosso excelso poeta, O.G. Rego de Carvalho, nosso maior romancista. Edmar Santana, um professor brilhante, talvez o mais velho, que logo se mudaria para o sul do país e de quem há poucos anos recebi das peças teatrais, Eustachio Portella, que se tornaria psiquiatra de renome nacional, José Camilo Filho, que desenvolveria o ensino universitário no estado, através de nossa Universidade Federal, de que foi Reitor por dez nos, Afonso Ligório Pires de Carvalho, jornalista e romancista, residente em Brasília, Genésio Pires de Carvalho, procurador público, o autor desta nota e os que já se encontram do outro lado do mistério, como diria Machado de Assis; Arnaldo Victor de Pinho, bancário e engenheiro naval, José Maria Ribeiro, membro de nossa Academia e alto funcionário do Banco do Brasil, José Ribamar de Oliveira, romancista e membro da Academia, e Vítor Gonçalves Neto, o nosso Vitinho cronista e boêmio incorrigível. Vez por outra, por ali aparecia, como um furacão, o poeta Anísio de Abreu Pereira da Silva, que a frequentou por pouco tempo.

Em nossa Arcádia, como se auto-intitulava aquele grupo estranho aos pacatos hábitos provincianos, foram geradas algumas idéias importantes, como a da criação do Clube dos Novos, de vida efetiva até o final da década de 40, e a Revista Meridiano, que seria dirigida por O.G., Hindemburgo e o autor destas linhas que, como revista literária, surgiria também ao influxo daquelas discussões bizantinas

Tudo isto, que já é passado, em nós ainda subsiste. O desfile das moças em flor, quais aquelas “jeunes filles em fleurs” de Marcel Proust, a corneta do Quartel, em seu toque de silêncio, como que a chamar para seu redil as moças casadouras, os nossos sonhos e esperanças fementidos, tudo revive ainda em nós, como naquela quadra de Pessoa:

“Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma”.



M. Paulo Nunes
em P2 
Livraria e Editora Corisco LTDA, Teresina: 2001


18.11.14

a paz do pântano, por Paulo Machado



Nas ruas da minha cidade há lições?
           (É preciso aprendê-las)

Desfazer o enigma da Rua Grande,
Onde os revolucionários depredaram o bonde
E apagaram os gestos dos ditadores,
Numa rubra manhã de outubro.


(A malha da história sendo tecida pelas mãos operárias)


Lembrar o fantasma de um coronel loquaz
que acrescia cores às suas façanhas
e vadiava pela Rua da Estrela,
atravessando paredes,
sumindo na cinzentura da tarde.


Os paralelepípedos da Rua da Glória
tinham a densidade do sono nas tardes de verão.


Insisto:
aprender as lições que há nas ruas da minha cidade.
Na Rua Bela, era proibido amar.
(Há tempos proíbem as lições de liberdade, no meu País.)


Na Rua dos Negros, francesas faziam amor
com os filhos dos coronéis.


Na Rua Paissandu, havia sol nos corações dos amantes.


O tempo não apagou o que falavam os operários
da Companhia de Fiação, nos dias de cinza da ditadura Vargas.

Diziam coisas reais
aprendidas no galope das máquinas
e no silêncio das horas, nas noites insones.


O imperialismo saia do Cine Olympia
para as mesas do Bar Carvalho;
a Casa Inglesa penhorava a vida dos camponeses.


Não importa que o presente me apunhale.
Desafio o ódio
dos que desconhecem como é difícil penetrar
no âmago das verdade proibidas
e acreditar nos homens.


Caminho solitariamente pelas ruas da minha cidade
e guardo-me para desvendar seus segredos.
Como é difícil compreender
os mistérios de uma cidade,
mesmo que seja uma pequena cidade
situada na zona tórrida,
no nordeste do Brasil.


A Avenida Frei Serafim divide a cidade em duas fatias de medo.


Aos domingos a cidade está deserta e dócil
ao carinho da procura.

Parece que seus habitantes partiram
e nada deles restou.


A cidade, desabitada, treme de gozo
aos afagos dos estranhos,
mas nunca se entrega inteiramente.


Impossível dizer quantas faces tem a cidade.


A constância do azul, no céu da cidade,
ensina que é preciso renascer das cinzas da noite,
porque a vida é um contínuo amanhecer.


A cidade e as tragédias familiares,
as muitas dores abafadas,
as vergonhas que as famílias guardam
no fundo das gavetas.


Minha cidade já viu morrer
muitos homens e silenciou.
E este silêncio ensina
que não basta ver a morte de homem
para aprender que a vida
se escreve com a melhor letra.


As ruas da minha cidade ensinam lições de solidão?


Conheço minha cidade,
como conheço o meu corpo.

Meu corpo propõe insurreições
e persiste, insubmisso, entrincheirado
nas ruas da cidade ensolarada.


A cada dia que passa,
a cidade torna-se difícil.

Os que a amamos,
Sentimos sua renúncia.


Enfurecida, a cidade é uma loba no cio.


Escapo à armadinha do tempo:
aprendi a árdua lição
de que as palavras são potros bravos.


Aprendi a inventar amanhãs,
moldando o futuro
com minhas angústias de homem.

Aprendi que sou um náufrago em mim mesmo
e já não procuro meu avesso
nos fracassos acumulados.


O presente insiste em me apunhalar.
Vejo minha cidade:
ancoradouro de fúrias invisíveis,
e seus horizontes repetidos.



Paulo Machado
em "a paz do pântano"
Oficina de Arte: Teresina, 1982


17.10.13

TERESINA DO MEU TEMPO (A PRATA DA CASA)




Quando cheguei a Teresina, no início de 1923, para continuar os estudos iniciados na fazenda, frequentei o Ateneu Teresinense, do Padre Cirilo Chaves, e os cursos particulares dos professores B. Lemos, Douville Leal e José Amável, e ainda, paralelamente, tomei aulas de música e de violino. Por isso, apesar da pouca idade, pude de certo modo acompanhar o que se passava nos meios artísticos e intelectuais da cidade, os quais, olhados hoje da janela do tempo - é bom que se saiba - parece não terem nada a dever aos dias que atravessamos.

Teresina, por essa época, era uma cidade tipicamente provinciana, com seus costumes, seus preconceitos, seus mexericos, seus modos de terra pequena ainda cheirando aos matos onde a encravara, no meado do século anterior, o Conselheiro Antônio Saraiva. Mas possuía já uma vida artística, musical, literária, bastante intensa. As "Horas de Arte", festas domingueiras nas quais se apresentavam os amadores locais - a prata da casa - em geral elementos próprios da sociedade teresinense, se repetiam com frequência e agrado. Nessas reuniões, realizadas ora pela manhã, no Cinema Olímpia, depois da missa das 9 no amparo, ora à noite, no Teatro 4 de Setembro, ouviam-se solos instrumentais - piano, violino, flauta, bandolim, violão - números de canto e dança. Poesias eram declamadas, muitas vezes pelos próprios autores, e não faltavam os discursos nas festas comemorativas e cívicas. Ainda estavam em moda as conferências literárias, pronunciadas pelos intelectuais em evidência, sob os mais variados e inusitados temas: "A tesoura", "As mãos", "A luz", "As estrelas". Eu mesmo (naturalmente bem mais tarde) cheguei a escrever uma, jamais pronunciada e finalmente perdida, sob o título "O elogio da lágrima". Talvez influenciado pela tese de doutoramento de Alcides Freitas, médico e poeta piauiense cedo desaparecido, versando o mesmo assunto, embora até então dela só tivesse notícia, por constituir verdadeira raridade bibliográfica.

Já haviam desaparecido, no meu tempo, os grupos teatrais "Clube Recreio Teresinense", "Os Amigos do palco", "Os Talianos" e outros que, com certa regularidade, ofereciam dramas e comédias no Teatro 4 de Setembro. São dessa época as revistas "O bicho", "Frutos e Frutas", "O Coronel pagante" e "Jovita", todas de Jônatas batista com músicas de Pedro Silva. Ainda alcancei os "Amantes da Cena Viva", grupo dirigido ou orientado por Antônio Prado de Moura, o popular cantor Pintassilgo. Creio que foi por esse conjunto que assisti ao drama "Mariazinha", também da conhecida dupla, peça que muito me comoveu quando um dos personagens, em violenta cena de ciúme, enfiou uma faca no peito do rival e o sangue jorrou ensopando-lhe a roupa, enquanto este, cambaleando e sempre cantando com a mão no ferimento (ai, ai, ai) se estatelava no chão...

Os maiores animadores desses movimentos artísticos foram inegavelmente Pedro Silva e Jônatas Batista. Isso sem falar dos intelectuais e poetas, como Higino Cunha, Mário Batista, Zito Batista, Celso Pinheiro, Antônio Chaves, Édison Cunha, os quais ainda que em outros gêneros, emprestaram o concurso do seu talento para o sucesso dessa fase brilhante da capital piauiense.

Convém lembrar também, com a homenagem do nosso louvor, D. Zila Paz, pianista, notável acompanhadora; Agripino Oliveira e Eudóxio Neves, flautistas; Alfredo Mecenas, Zenaide Cunha e Alzira Gomes, violonistas; Durcília Batista e Amália Pinheiro, bandolinistas; Carlindo Freire de Andrade, contrabaixista; Napoleão Teixeira, arranjador e regente. D. Adalgisa Paiva e Silva é outro nome que reverencio, de assídua e brilhante colaboradora, como pianista e diretora de bailados organizados com moças da sociedade, nos referidos momentos de arte. Os músicos que formavam os conjuntos orquestrais, muitas vezes de mistura com elementos amadores, eram requisitados dentre os melhores (e havia-os muitos) das bandas da Polícia Militar e do Batalhão do Exército.

Era também a época em que as principais residências tinham sempre um piano na sala de visitas, onde um ou outro membro da família ou visitantes faziam música tocado valsinhas seresteiras e tangos argentinos ou acompanhando improvisados cantores. Radagásio Maranhão e, um pouco mais tarde, Dionísio Brochado, são dois dos pianeiros mais conhecidos a brilhar nos saraus familiares de Teresina. O aperfeiçoamento do rádio e algum tempo depois a televisão acabaram com essa louvável tradição

As bandas musicais da Polícia e do Exército revezavam-se às quintas e domingo à noite nos coretos das praças Rio Branco e Pedro II. Ah! a poesia das retretas! A música a serviço da comunidade nas cidades pequenas... A música congregando, unindo, reunindo, divertindo o povo nas pracinhas acolhedoras... A música gerando amizades conservando as já existentes, distribuindo paz e alegria... O footing animado ao redor do coreto, os namorados que aí se iniciavam ao som dos dobrados patrióticos, das marchinhas festivas, das melodias cativantes pela própria beleza e não pela agitação frenética dos ritmos... Quantos casamentos resultaram desses namoros sob o feitiço misterioso da música! Depois da retreta, a cidade tranquila, sem automóveis e sem bondes, sem a trepidação da vida dispersiva e barulhenta de hoje, se recolhendo para dormir, mergulhada no mais profundo silêncio...

Teresina... Cidade Verde... Cidade Menina... Cidade Coração... Quanta saudade! Os banhos no velho Parnaíba... Os passeios de barco no Poti... As novenas de maio... Os saraus familiares onde o meu violino alcovitava, falando ou cantando baixinho aos ouvidos e ao coração das namoradas: Rosilda...Lourdinha...Maria Luísa...Maria... Ai, violino amigo, há outras Marias sim, mas não sejamos indiscretos. Engraçado: quando foi para casar, o violino fechou-se no seu estojo e nada fez. Nenhuma palavra. Melhor dizendo: nenhuma nota. Foi Santo Antônio, o casamenteiro, e na vizinha Flores, quem me arranjou aquela jóia morena que enfeitou e enriqueceu a minha vida durante cinquenta anos e que, para desconsolo no final da jornada, acabo de perder. Mas, com licença: o assunto é outro.

x
x  x

A descrição desses fatos e a citação desses nomes me deixam feliz pela a oportunidade de fazer justiça àqueles que inegavelmente terão influído na minha formação musical e decisivamente concorrido para elevar o meio artístico e cultural da capital piauiense, onde passei boa parte da minha vida. Eis por que transcrevo a seguir os versinhos que um dia me brotaram do coração e com que homenageei o confrade e amigo A. Tito Filho pela publicação do seu delicioso "Teresina meu amor":


RONDÓ À AMADA AUSENTE

Não quero flor nem brilhante,
Quero carinhos de amante
Para o mais fino louvor
A quem já nasceu prendada
- A ti, minha namorada,
Teresina meu amor!

Quando nós nos encontramos,
Logo nos apaixonamos,
Tu - princesa, eu - trovador.
Atirei-me nos teus braços,
Teresina meu amor.

Amor à primeira vista,
Não perdeu tempo em conquista,
Já nasceu triunfador.
- Formosa rosa trigueira,
Flor da raça brasileira,
Teresina meu amor.

Foi grande o amor que me deste,
E outro amante não tiveste
Com mais paixão e calor.
Em noites de serenatas
Dediquei-te mil oblatas,
Teresina meu amor.

Minha música, meu verso,
Cantasse o céu, o universo,
Tinham meu mel, tua cor.
Vivi de ti impregnado,
- Garotão apaixonado,
Teresina meu amor...

Assim vivemos, querida,
A quadra melhor da vida
Que me deu Nosso Senhor.
Mas em busca de outros ares,
Perdi-me noutros lugares,
Teresina meu amor.

Vaguei, sofri duramente,
Envelheci de repente,
Do azar da sorte ao sabor.
Tu continuas menina,
Áurea estrela matutina,
Teresina meu amor.

Tão bonita e tão faceira,
És muito namoradeira,
De amantes possuis um ror
Sei de um, escritor de fama,
Que em belo livro te chama
“Teresina meu amor".

Vivo morrendo de ciúmes,
Da saudade subo aos cumes,
Desço aos socavãos da dor...
Mas não te esqueço um momento,
Vives no meu pensamento,
Teresina meu amor.

Ó dona dos meus desejos,
Mando-te um montão de beijos,
Pois te amo seja onde for.
- Minha cidade menina,
Minha linda Teresina,
Teresina meu amor!
em Notas fora da pauta
Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1988

Café Avenida I, por Moura Rêgo


Jornal A Cidade - 07/08/951


Quando deixei Teresina, em abril de 1951, ainda havia dois bares muito concorridos na Praça Rio Branco - o Bar Carvalho e o Café Avenida.

O Bar Carvalho era também restaurante e sua cozinha obedecia ao comando de um espanhol gordo de nome Gumercindo. Nunca esqueci o sabor de alguns de seus pratos. E já que aqui se fala de música, lembro o famoso filé à Carlos Gomes, para mim sem igual até hoje. E a farofa de ovos de que só em falar sinto a boca cheia d'água? De ovos mesmo e não apenas de ovo. À noite fazia também sucesso o substancioso chocolate com gema de ovo batida, servido numa xícara enorme - um verdadeiro jantar.

Apesar dessas delícias, o ponto de reunião ideal para o grupo de amigos e intelectuais que me incluía, notadamente na década de 40, era o Café Avenida, onde só bebíamos o tradicional cafezinho.

Ficava ao lado da igreja de Nossa Senhora do Amparo, sempre lotada aos domingos pela manhã, na missa das 9.

Vale registrar que, durante muitos anos, a missa das 9, no Amparo, constituiu ponto alto na vida social da cidade. Lá estavam senhoras e moças nos seus melhores trajes e homens de terno e gravata, apesar do calor de 40 à sombra nos meses terminados em "bro". O coro, do qual fazia parte com meu violino nos dias de festa, oferecia músicas e cantos agradáveis, acompanhando os atos litúrgicos. Muitas vezes lá nos encontrávamos, Martins Napoleão e eu. Por isso Celso Pinheiro troçava, dizendo que éramos do partido da negra velha...

Fotografia publicada no livro "Ulisses, entre o amor e a morte"
de O. G. Rêgo de Carvalho

Terminada a missa, não resistíamos a uma parada no Avenida, não só para aguardar a "hora do almoço", na expressão local, como especialmente para o descontraído e divertido papo na roda já formada por Celso Pinheiro, Martins Vieira, Álvaro Ferreira, Ribamar Ramos e outros, entre os quais, embora menos assíduos, os Professores Pedro Torres e Cláudio Ferreira, ambos egressos do Seminário, e o serventuário da Justiça, mais tarde desembargador, Manuel Belisário dos Santos.

Estabelecimento de sírios, o Café Avenida congregava também, invariavelmente, os principais representantes da colônia árabe que tão bem se adaptou à vida e aos costumes da terra, emprestando a ela o valioso concurso do seu trabalho, da sua experiência e do seu sonho de vitória no comércio, na indústria e outras atividades lucrativas; integrando-se enfim na segunda e bela pátria que os acolhera sem discriminação e com carinho e onde seus filhos, pela constituição de novas famílias, com o tempo se tornaram parte ativa da comunidade, brilhando muitos deles nas profissões liberais, na política, no magistério e até na administração pública.

Azar Chaib, Elias João Tajra, Miguel e Elias Caddah, Tomás Tajra, Elias Hidd, Miguel Sady, e Saba, Said, Adad, Mualem, Kalume - eis alguns de seus nomes. Sérgio Tajra, o patriarca da colônia, creio que à época já se havia transferido para São Paulo, onde passou a morar depois do falecimento da esposa, Dona Adélia.

Sentavam-se em área separada, ao fundo do bar, aí formavam o que eles chamavam de "roda" e onde durante horas, nos momentos de folga, trocavam idéias sobre suas vidas e seus negócios. Um apenas se desgarrava às vezes do grupo dos patrícios - o simpático Wady, para vir à nossa mesa contar anedotas das quais só ele ria...

Anedotas e episódios de fino humorístico eram aliás constantes na nossa roda de amigos. De Celso Pinheiro, o grande poeta simbolista admirado e aplaudido em sua terra e fora dela, excelente conversador, e de Martins Vieira - para nós simplesmente o Júlio - espírito vivaz e brilhante, sempre de bom humor, sobretudo deles guardo muitos casos. E embora fugindo um pouco ao tema principal destas Notas, mas justificando-o com o fato de aí se discutirem tudo, inclusive música, aproveito a oportunidade para recordar algumas dessas passagens pitorescas, num preito de saudade aos queridos companheiros mortos.

Celso não gostava do presidente Getúlio Vargas. Responsabilizava-o pelas desventuras do filho, o jovem e inteligente Celso Pinheiro Filho, mais tarde advogado e prefeito de Teresina, cujas idéias e atividades políticas o levaram ao presídio na ilha de Fernando de Noronha.

Certa manhã, ao acercar-me do grupo, meio atrasado, Celso Pinheiro foi logo me dizendo:

- Poeta, você não quer ver o Getúlio trabalhar no cinema? Deve ir, você é um Getulista.

Estranhando a sugestão, indaguei se se tratava de algum documentário importante, com imagens de realizações do vigente Estado Novo. Respondeu que não; tratava-se de filme em que o Presidente figurava como principal personagem, como ator mesmo.

Mais intrigado ainda, apanhei o programa do dia, que o Cinema Olímpia, ali pertinho, fazia distribuir sobre as mesas do bar. O título do filme era "Um espertalhão de marca maior". E Celso garantia, convicto:

- Só pode ser o Getúlio!



em Notas fora da pauta
Teresina: Projeto Petrônio Portela, 1988


16.10.13

TERCEIRO CONTINHO TERESINENSE


para o Maestro Emanuel Coelho Maciel


No cais do rio Punaré, um homem arrancava notas tortas de um violino, lembrando as travessuras de Villa-Lobos. Aparentava setenta anos. Era tão estranho à paisagem, como o rosto de Marilyn Monroe na tela do Cine Olympia, nas vesperais inesquecíveis.

Meninos passavam, quixotescos e distantes. Um cão ladrava inquieto. Uma mariposa peralta fazia cena. A chuva caía mansamente, envelhecendo o domingo.



Paulo Machado
Revista AO, número 2
Teresina: dezembro de 2011